Gritos, estética e esgrima

→ Recentemente comentávamos no grupo de Telegram da AdC um fio de conversa do subreddit r/fencing onde se discutem os berros e o ruído nas competições de esgrima olímpica. O estudantado da Arte do Combate pediu a minha opinião ao respeito, e pensei que estava bem resumir aqui também os pontos daquela conversa para futura referência.

Se ledes o fio de Reddit, veredes que a questão dos berros e do ruído na esgrima olímpica causa problemas. Há gente que se satura rapidamente com espaços ruidosos. Um encontro de esgrima (e de HEMA, mais) já gera muito ruído de seu, com o bater das espadas, movimento de pés, etc. Ademais, tendem a ser em pavilhões com muito eco, amplificando o assunto. Se a isso somamos os berros, pois pior.

Além do ruído de seu, os berros têm para mim o problema que envolvem, direta ou indiretamente, a oponente. No melhor dos casos, é um berro de êxtase ou de frustração se consegues ou falhas em fazer o que pretendias. Isso não é exatamente um ataque pessoal, mas alguma pessoa pode ver-se coibida ou limitada se o interpreta assim.

Até certo ponto é responsabilidade de cada quem interpretar bem o que está a suceder (como o é lidar com espaços ruidosos, se a atividade o demanda). Mas, por outra parte, penso que numa atividade de grupo temos a responsabilidade de tentar criar o melhor ambiente possível para a gente com que partilhamos a atividade — e isso, para mim, implica fazer que se senta confortável.

E já no aspeto estético — eu não gosto. Penso que há uma certa dignidade no que fazemos que está bem manter. Está bem reconhecer os tocados da outra pessoa. Está bem rechaçar os nossos se consideramos que não foram de qualidade. Está bem não explorar uma situação que vai além do contexto do assalto — por exemplo, se algum elemento externo distrai a outra pessoa.

Na mesma linha, acho que está bem não berrar, como norma. Igual que o público dum dos nossos assaltos normalmente não berra animando a qualquer uma das partes, penso que as combatentes tampouco devem berrar.

Há exceções, obviamente. Às vezes uma ação é tão espetacular que o público solta uma ovação, ou mesmo aplaude. Às vezes cagamo-la tanto que é inevitável não soltar uma maldição de frustração. Eu penso que isso tudo é normal, e não se passa nada. O elemento chave é a atitude. O que discute o fio que vos passei é a atitude, mais ou menos dominante nalguns setores da esgrima desportiva atual, de que berrar é parte do desporto.

Eu penso — mas já sabedes que penso isto de muitos aspetos do que fazemos — que essa atitude de berrar é intrínseca ao aspeto competitivo, polo menos tal e conforme entendido hoje em dia. Penso que não podemos ter um circuito regular e consolidado, padronizado e com rankings, e onde eventualmente alguma gente até consiga ser profissional… sem ter gente que berre. Os tenistas berram e rompem raquetas. Os futebolistas berram com os árbitros ou outros futebolistas. Os atletas deixam-se cair de joelhos a chorar se perdem… Isso todo é o que vemos na cultura mediática do desporto de competição atual.

Se levamos a esgrima histórica nessa direção — a do desporto de competição de massas — isso é o que vamos obter. Vai ser quase impossível pretender uma cultura estética divergente da hegemónica.

Portanto, e em resumo:

  • penso que berrar (e fazer ruído, em geral) é pouco respeitoso
  • penso que ademais é pouco estético
  • penso que só se pode evitar via cultura e atitude
  • e penso que essa cultura e atitude alternativas não são compatíveis com a direção que a esgrima olímpica tomou, que parte das HEMA parece querer.

Caveat

Que uma gente queira essa cultura de competição, e eu (e outra gente) queira(mos) outra não é exatamente uma dicotomia. Podem existir ambas. É possível ter eventos de HEMA-desporto onde a gente berre e atue como na esgrima olímpica, e é possível ter em paralelo eventos calmados onde a gente foque na diversão, nos aspetos técnicos e em partilhar a experiência em coletivo.

Há espaço para conviver nas diferentes aproximações. Mas é importante que estabeleçamos as expetativas, nas atividades que organizamos, para que as pessoas que a elas atendam saibam como se comportar nelas, e o que podem aguardar.

 

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