400 anos e nada muda

Em 1942, depois do ataque japonês sobre Pearl Harbour, os USA estão a livrar uma guerra no pacífico que com frequência envolve ações na floresta selvática e confrontos contra cutelos, machetes, baionetas e mesmo com espadas dos oficiais japoneses.1

Neste contexto, Frederick Ehrsam, C.E.2 escreveu um manual para a faca ou cutelo de campo LC-14-B. Este estava desenhado para o trabalho no mato, e vinha acompanhado de vários instrutivos para o seu aguçado e uso como ferramenta, mas também dum pequeno livrinho de 16 páginas titulado Fighting with U.S.A. Knife LC-14-B (The woodman’s pal).

O tipo de esgrima prescrita no texto, necessariamente superficial, tem uma clara inspiração na esgrima de sabre (como também a guarda do cutelo), adaptada. Porém, o mais interessante para nós são várias instruções de caráter geral dadas para soldados que, com probabilidade, tinham zero experiência em esgrima. De entre o conjunto destaca, na página 11:

«Feint and attack until you hit. If your attack should miss or be parried, do not stop; change the attack continuously from one point to another until successful, or until you are forced to stop.

» If any movements have missed or have been parried […keep attacking exposed openings]. The idea being that as long as you attack, the opponent must parry; if you stop attacking, he will take the initiative and force you on the defensive.»

«Executa fintas e ataques até atingires. Se o teu ataque falha ou é defendido, não te detenhas: continua o ataque mudando de um ponto para outro até teres sucesso, ou até que te vejas na obriga de parar.

» Se os teus movimentos falham ou são defendidos […continua atacando as aberturas expostas]. A ideia é que enquanto te mantiveres no ataque, a outra pessoa deve defender; se deténs o ataque, tomará a iniciativa e obrigará-te a a defender a ti.»

— Frederick Ehrsam, Fighting with U.S.A. Knife LC-14-B, 1942, p.11.
Tradução própria.

Vale comparar isto com os conselhos recolhidos no manuscrito GNM HS 3227a de ~1389 (que temos traduzido e publicado sob o título Há Uma Única Arte da Espada):

«M|Otus · das worte schone /
ist des fechtens eyn hort vnd krone /

 |der gancze mat~iaz / des fechtens / mit aller pertine~ciã / |Vnd der artikeln gar / des fundamentes / dy var / |Mit name~ sint genant / vnd werden dir hernoch bas bekant / |Wy deñe eyñ nur ficht / zo sey her mit den wol bericht / |Vnd sey stetz i~ motu / vnd nicht veyer wen her nit / |An hebt czu fechte~ / zo treibe her mit rechte / |Vm~er in vnd endlich
eyns noch dem andñ künlich / |In eyme rawsche stete / an vnderlos imediate / |Das iener nicht kome / czu slage des nympt deser frome~ / |Vnd iener schaden / |wen her nicht ungeslage~ / |Von desem kome~ mag / tut nur deser noch dem rat / |Vnd noch der leren / dy itczunt ist geschreben / |So sag ich vorwar / sich schützt iener nicht ane var / |Hastu vornome~ / czu slage mag her mit nichte komen /

¶| |Hie merke~ · das · freque~s motus · beslewst in im / begy~nis / mittel · vnd ende / alles fechtens / noch deser kunst vnd lere / |alzo das eyñ yn eyme rawsche / anhebu~ge / mittel / vnde endu~ge / an vnderlos vnd an hindernis synes wedervechters volbrenge / |vnd iene~ mit nichte lasse czu slage kome~ […]»

«Motus: esta verba formosa
é da Arte coração e coroa.

» Pois de facto é desta matéria e não doutra que trata a Arte do Combate. Todo o que esta palavra contém e os fundamentos que nela há serão logo nomeados e explicados.

» E quando fores lutar deves ter estes fundamentos em mente e permanecer em movimento, sem hesitar quando tiveres alguém diante. Deves despregar as tuas artes sem temor, com confiança e sem duvidar, num fluxo constante de ações, para não lhe dares oportunidade de atacar. E assim vás ferir a outra pessoa, que não vai poder atacar por estar ocupada na defesa. E por isto eu digo: «não há defesa sem perigo». Se entendes isto, não terá oportunidade de te ferir.

» Então, tem presente: Frequens Motus, movimento constante, está no início, meio e fim de toda briga, e assim diz esta Arte e estas lições. Deves passar pelo início, meio e fim do combate num único fluir de movimentos, sem te deteres e sem que ninguém te detenha, e sem lhe dares oportunidade de atacar.»

— Anónimo, GNMHS 3227a, ~1389 f.[16r-17v].
Transcrição por Dierk Hagdorn, na Wiktenauer.
Tradução própria.

Sempre achei os conselhos do 3227a surpreendentemente contemporâneos, semelhantes aos que daria um manual do nosso presente. Comparados com as instruções deste manual de combate de há quase um século — certamente com vontade de ser aplicadas — o porquê é evidente: Há Uma Única Arte da Espada.

 

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Lançamento oficial do livro «Há Uma Única Arte da Espada»

A vindoura quinta-feira 15 de novembro celebraremos o lançamento da tradução para o galego/português do GNM HS 3227a que titulamos Há Uma Única Arte da Espada. Será na Livraria Couceiro de Compostela, na Praça do Pão (também chamada «de Cervantes») às 19h45. Como oradores atenderão Manuel Valle Ortiz (director da AGEA Editora), Carlos Quiroga (professor de literaturas lusófonas na USC) e Diniz Cabreira (diretor da escola de artes marciais históricas Arte do Combate). Temos um convite em PDF que agradecemos faças chegar às pessoas que consideres puderam ter interesse no ato. Também ficamos em dívida se indicas assistencia e partilhas o evento que criamos no Facebook para publicitar o lançamento. O livro pode ser já comprado on-line no site web da AGEA Editora, ou bem ao pessoal da Livraria Couceiro o mesmo dia. → Mais informações acerca do livro.

Há Uma Única Arte da Espada?

Com o galho da publicação do livro Há Uma Única Arte da Espada surgiu no Facebook um comentário, muito razoável, de Aleksander Yacovenco. A resposta é um bocado extensa, dá para reflexionar em vários pontos, e acho que é útil recolhe-la cá. Eis o comentário e, de seguido, a resposta:
Se me permite a crítica, você não acha que “Há Uma Única Arte da Espada” parece um nome um pouco arrogante? Mesmo na Europa existiam diversas variantes da esgrima. Comparando apenas as escolas de esgrima européias mais comuns no contexto contemporâneo de HEMA, acredito eu, Liechtenauer e Fiore, podemos ver que há diferenças marcantes. Isso sem comparar com artes marciais de países não europeus, porque aí teríamos uma infinidade de artes marciais diferentes, cada uma no seu contexto e merecendo o devido respeito. Eu acredito que não foi com essa ideia que você escreveu o livro, só queria fazer essa observação e procurar esclarecimento sobre o porquê da escolha do título
É arrogante, sim. 🙂 O nome está tirado do próprio manuscrito (que não traz título). No parágrafo inicial, diz:
Acima de tudo deves saber e compreender que há uma única Arte da Espada e que esta arte foi concebida e pensada centenas de anos atrás. Esta arte é alicerce e coração da Arte do Combate, que foi plenamente entendida e conhecida pelo Mestre Liechtenauer. Mas ele não inventou ou criou o que é descrito aqui, senão que viajou e procurou por muitas terras, pois queria aprender e experimentar a Arte.
O que esse trecho significa está aberto a interpretação, logicamente. Mas eu considero que pretende afirmar os seguintes pontos:
  1. A Arte do Combate é muito antiga
  2. Liechtenauer dominou totalmente esta Arte
  3. Liechtenauer reuniu ou compilou a Arte (na Zedel, podemos inferir)
  4. A Arte da Espada é a base da Arte do Combate
  5. A Arte da Espada é, também, simples, reduzível para conceitos gerais ou mesmo universais (isto é: para a Arte do Combate)
  6. A Arte da Espada é em consequência a forma de se iniciar num sistema integral, universal, para lutar com qualquer espada ou até qualquer arma.
Os pontos 1 – 3 são basicamente glorificação do texto que vai ser exposto de seguido, e apelo a uma autoridade remota e inatacável pela via da antiguidade. Isto é um recurso muito comum na escolástica medieval (e ainda hoje). O ponto 4 é, de facto, discutido em vários lugares do texto: é dito que a Arte da Espada desce da Arte do Messer, e depois ainda que ambas e o Combate inteiro descansa no Ringen. Isto é, com certeza, um novo apelo à antiguidade e precedência para legitimar esses trechos do texto. Mas também há, como é habitual, um fundo de verdade: a Arte da Espada de duas mãos presentada no 3227a tem claros vínculos com o uso da espada de uma mão. E a luta corpo a corpo é a base mecânica da que nascem muitos outros tipos de luta. Muitos combates acabam em luta corpo-a-corpo. E também por ser a luta corpo-a-corpo muito distante (nos aspectos específicos da aplicação) da espada de duas mãos, comparando ambas os princípios comuns subjacentes (Schwach/Stark, Weich/Hart, Vor/Nach, Indes e Fühlen, Blößen, etc) destacam com clareza. Isto é, fundamentalmente, o recolhido nos pontos 5 e 6. A técnica específica da arma requer adaptação quanto mais diferente seja a arma (da espada de duas mãos para uma mão há pouca mudança comparado com a lança curta, e maior se a lança é longa e estamos a cavalo, e ainda mais na luta corpo-a-corpo). Mas os princípios comuns a todas formam o arco abrangente que seria a Arte do Combate. Esta abstracção, este Arte do Combate generalizado, é aplicável a qualquer escola e a qualquer arma. Transcende as particularidades dum mestre ou outro, e duma arma para outra. Da mesma forma na actualidade podemos aplicar a teoria dos «tempos» da esgrima contemporânea, ou compreender a verdade por trás dos «True Times» de George Silver, ou aceitar a descomposição geométrica da Verdadeira Destreza, ou comparar os pares de Schwach/Stark e Weich/Hart com outras muitas artes marciais. Seja como for, acho que é por isto que era dada tanta importância na tradição de Liechtenauer ao aprendizado da espada de duas mãos: através dela aprendemos aspectos teóricos comuns, e mesmo técnica aplicável, para as demais armas.1 Então — sim, a afirmação pode ser vista como arrogante, ainda que também pode ser interpretada dum ponto de vista mais filosófico. Vale dizer, em favor da verdade, que o anónimo autor do manuscrito dedica bastante texto a falar mal da esgrima «ruim e vulgar» que fazem outros mestres que não seguem a escola de Liechtenauer. Neste sentido nem se distingue da Verdadeira Destreza, nem de George Silver, nem do I.33, nem do próprio Fiore, por citar apenas alguns exemplos. Em todo caso, a frase deve ser entendida no contexto histórico e cultural adequado, onde o autor está apenas a utilizar a retórica socialmente aceite. O que não quer dizer que eu não concorde em certa medida com ele. 😉

Nova publicação: «Há Uma Única Arte da Espada»

Venho de publicar, com a ajuda da AGEA Editora, a minha tradução do GNM Hs 3227a, titulada Há Uma Única Arte da Espada.

Este não é o final do processo de cinco anos que levou a imprimir o livro: continuarei a trabalhar nesta e noutras traduções. Mas é um passo importante: deixar codificado o estado atual do meu entendimento da Kunst des Fechtens descrita no manuscrito.

O primeiro lote, recém acabados.

Aguardo que seja também útil para o estudantado da Arte do Combate. Ainda que o trabalho prático das aulas bebe de mais fontes que esta; e ainda que a prática muitas vezes encontra conflitos com a teoria, ler o que os autores originais nos deixaram escrito é sempre muito educativo.

Acho que também pode ser útil para qualquer pessoa com interesse na KdF ou nas artes marciais europeias dos S.XIV – XV. O 3227a é um texto singular, e o seu autor escreveu muito, e muitas vezes de forma muito clara, acerca da sua visão da Arte.

Podes ler mais acerca do livro (e também ver como comprar) na página dedicada ao mesmo da seção de recursos deste blogue.

Por enquanto, eis umas imagens: