Guiar o carro e jogar a espada

Há pouco passei os exames necessários para obter a carta de condução. Era uma tarefa que tinha pendente desde havia muitos anos. Até o presente não achara realmente necessária, deslocando-me em transporte público, mas a vida muda e novas motivações surgem.

A minha mãe não gostou nada quando lhe enviei esta fotografia com a legenda «Licença para matar!».

Devo reconhecer que nunca foi um assunto do meu interesse, e em consequência não prestei nunca atenção nenhuma as questões relativas os carros (funcionamento, controlos) e a estrada (marcas viárias, códigos explícitos e implícitos, e até orientação básica). Portanto, aproximei a este processo desde uma ignorância bastante absoluta. E no aprendizado tive, várias vezes, sensações que me traziam memórias dos treinos de artes marciais.

Senti essa falha de familiaridade inicial ao ter nas mãos uma ferramenta totalmente nova, desconhecida, cujo funcionamento, medidas, feedback e comportamento desconhecia. Necessitei tempo e repetição de movimentos para me fazer com as distâncias, saber até onde chegam partes dela, quais são forças necessárias para a pôr em movimento e as inércias uma vez que já está, etc.

«Toda Arte tem Distância e Medida» —Johannes Liechtenauer, na Zettel.

Experimentei o desconhecimento das normas de trânsito, a falha de certeza no que fazer. Em ter que aprender a ler um novo sistema de sinais e responder a elas com agilidade. Fui ciente que tinha um conhecimento teórico de isto tudo, mas que existia uma distância considerável entre conhecer essa teoria e ser quem de a explorar na prática.

E, como em qualquer arte marcial, redescobri o imperativo de observar o que as outras pessoas fazem enquanto eu trabalho: quais são as suas ações e intenções (por vezes não coincidentes), estar alerta e agir em consequência. Aprender, por exemplo, a ler quando um carro vai virar pelos sinais subtis que dá, e não aguardar apenas a que sinalize através do indicador (cousa que muitas vezes não sucede).

A prova.

Recentemente fiz várias viagens longas e tive esse momento de epifania em que descobri que já sabia fazer isso tudo (melhor ou pior, mas suficientemente bem como para poder levar o carro várias horas seguidas, por estradas e autoestradas desconhecidas) e a condução convertia-se nesse fluxo de acções espontâneo, informado polo que sucede no exterior mas ao tempo inconsciente, ou apenas parcialmente consciente. Esses momentos de estado de fluxo, de integração com a arte que seja que estejas a praticar, em que tudo o que estás a fazer vira natural e sem esforço, é para mim uma das recompensas maiores do estudo de qualquer disciplina.

Acho que é importante reflexionar sobre estas cousas. Tenho insistido mais duma vez nas aulas ao meu estudantado que há muitas experiências na vida que «são artes marciais» na forma em que as aproximamos: aprender um novo conjunto de habilidades (como guiar um carro), encarar e resolver conflitos (ou descobrir que não há vitória possível neles e é melhor fugir), melhorar através da auto-disciplina e trabalho sistemático (como aprovar uns exames qualquer), etc.

Não acredito realmente nesse repetido conceito de que as artes marciais tenham qualquer qualidade especial que as faz dar lições para a vida. Mas é certo que todas as experiências que acumulamos interagem entre si, e quando uma delas ocupa um lugar importante na nossa mente com frequência serve de padrão para estruturar, analisar e entender o resto da existência. Imagino que um violinista sentirá o mesmo acerca da música, ou uma carpinteira no trabalho da madeira. Para nós que estudamos a fundo uma arte marcial, é quase inevitável vermos o universo através dela. E isso, acho, facilita a vida, e traz paz.