Proémios para o estudo das armas de haste

Ringes gut fesser | glefney sper Swert unde messer

— Johannes Liechtenauer, Zettel.

Embora a nossa atividade principal é o estudo da espada de duas mãos sem armadura, a Arte do Combate faz uso duma panóplia mais ampla que aplica os mesmos conceitos. O estudo desses conceitos através das diferentes armas permite, com frequência, um melhor ou maior entendimento dos mesmos.

Nos últimos tempos, em parte forçados polas circunstâncias, estamos a afundar no estudo do combate com armas de haste. Este artigo pretende recolher as minhas notas iniciais, e será seguido doutros a tratar uma primeira interpretação de várias fontes — deverão ser todos arquivados sob o tag «Hastes» deste blogue.

As fontes

Existe muito material dentro do corpus das HEMA para as hastes, mas o interesse da Arte do Combate está nas armas da cavalaria do S.XIV – XV, e especialmente a tradição de Liechtenauer e adjacentes, o que restringe as fontes às que podemos recorrer.

De momento estamos a usar como referência:

  • A Zettel (completa) de Liechtenauer inclui algumas técnicas para lança, tanto a cavalo como a pé, sempre com arnês. Não todos os manuscritos a comentar a Zettel afundam nesta matéria, porém. Ringeck e Lew sim, por exemplo, em medida diferente. Também Danzig.
  • Le Jeu de la Hache é um tratado especializado em combate com archas em arnês. É muito interessante e, embora fale especificamente de archas (hache, Axt, Mordaxt, Pollax), o 95% da técnica é igualmente aplicável a uma lança ou um bastão. O restante 5% pode ser adaptado com maior ou menor dificuldade.
  • Os diversos tratados para o jogo da espada curta em arnês. A técnica da espada empunhada com uma mão no cabo e outra na lâmina é muito semelhante à descrita para a Mordaxt.

Nas aplicações da arma compre distinguir:

  • Haste a pé e lança a cavalo
  • Haste com arnês e haste sem ele
  • Pegada curta e pegada longa
  • Há distinções também na forma da ferramenta: Lança (Glefen, Sper), Archa (Mordaxt, Axt, Hache) e Bastão/Vara (Stangen).

No presente estamos a focar no uso da lança a pé, com e sem arnês.

«Haste» como conceito transversal: contextos

Do meu ponto de vista a distinção morfológica (lança/archa/bastão) é relativamente irrelevante quando falamos de combater vestindo arnês. A técnica é muito semelhante.

No caso do bastão em combate com roupa de rua, a técnica vai ser muito semelhante à utilizada para o combate com arnês. Ainda que uma estocada dum bastão pode ser muito lessiva, em termos gerais os estremos, ao não ter fio nem ponta, não são uma ameaça tão imediata. As «cuteladas» do bastão vão ser o aspeto principal do jogo. Para fazer um bom jogo de cuteladas com uma haste das nossas dimensões,1 o melhor é pegar nela no meio, como se empunha uma archa ou lança contra alguém que veste arnês.

Por contra, se usamos lanças ou archas contra alguém que não veste arnês, o razoável é empunha-las por um estremo e usar técnica semelhante à duma espada longa: combater desde as Hengen e usar Winden e estocadas e cortes (schnitten) desde a Sprechfenster. Aproveitar o alcanço máximo, e tentar colocar boas estocadas guardando-nos das da outra pessoa. Eu prescindiria quase totalmente de cuteladas, salvo que se veja uma oportunidade muito evidente.

Isto é congruente, de novo, com a recomendação do 3227a, que fala de que a «stangen» (que literalmente é bastão, mas que eu interpreto como modelo para as armas de haste em geral) devem ser usadas com a técnica da espada. Isto é: a espada encurtada (uma mão no fio) para combater contra alguém que veste arnês (=a técnica da archa) e a espada «longa» para combater contra quem não (o já dito acima).

Hastes na Arte do Combate: caraterísticas

Uma haste de 240cm serve como arma por si própria (Stangen) ou para montar cabeças de lança (Sper, Glefen) ou archa (Mordaxt, Axt, Hache).

Em consequência, começamos por definir o que será uma haste no contexto da Arte do Combate: qualquer vara de madeira, com ou sem ferragens nos estremos, igual ou superior à altura da pessoa que a empunha. A cota superior estaria no limite que permita usar a haste com comodidade a pé.

O ponto ideal está num comprimento de haste que pudera ser usada tanto a pé como a cavalo. Esta medida está entre os 250 – 350 cm. Mais disso fará a haste de difícil manuseio a pé. Menos, dificultará o seu uso a cavalo.2

Logicamente existem hastes especializadas só para o uso a pé, menores mesmo que a estatura de quem as empunha, e mais longas para uso a cavalo. Estimamos que a lança de uso exclusivo para cavalaria pudera chegar aos 4 – 5m. Mas este não é o nosso objeto atual de estudo.

Jason Kingsley, da Modern History TV, a mostrar uma lança duns 4.5m, a cavalo.

A madeira que estamos a usar é de bidueiro (bétula em Portugal, birch em inglês). É ligeira e doada de trabalhar, e existia na Europa na idade média.

Das minhas pesquisas acho que a madeira ideal seria teixo (yew em inglês), igual que os arcos. Mas é difícil e caro procurar hastes dessa madeira aqui.

Como nota marginal, na cultura popular da Galiza o bidueiro está associado à proteção de moradas e proteção contra o mal. Na idade média, os criminosos eram chicoteados com ramos de bidueiro. De modo que não semelha má madeira para fazer lanças (ou escudos).

A espessura da haste dependerá da aplicação e das preferências pessoais. Para uma haste curta de uso exclusivamente a pé, 2.5cm podem ser suficientes: isso fará que seja mais ágil e fácil de empunhar. Por contra, uma ferramenta mais longa que vai ver uso a cavalo necessitará um diâmetro maior. Nós estamos a usar hastes cilíndricas de 3.5cm de diâmetro, e acho que são um bocado excessivas: 3cm estaria bem. O ideal seria, também, uma ligeira queda distal cara a ponta, com objeto de aligeirar a haste.

Para as cabeças estamos a experimentar várias soluções:

  • Hastes sem nenhum tipo de ferragens (Stangen).
  • Cabeças de lança com asas (Sper) em aço, que face outras cabeças sem elas, estão mais orientadas para o combate a pé. Vale dizer que estas têm também um pé de ferro no extremo contrário, e que isso ajuda a equilibrar o conjunto.
  • Cabeças de lança (Sper) de borracha da ColdSteel — habitualmente não gosto dos produtos desta companhia, mas estas pontas são muito seguras e económicas. Talvez brandas demais.
  • Cabeças de archa (Axt) em borracha. Estas têm uns quantos anos e eram vendidas originalmente pela Revival.us, que não parece estar mais ativa. Porém, há fabricantes como Faits d’Armes que tomaram o relevo, e os seus produtos são bem mais atrativos (se bem caros).

As pontas da ColdSteel são muito seguras nas estocadsas, mas não têm consistência nenhuma: é quase impossível usar a parte de borracha para suster a arma contrária, como seria próprio. Porém, ao ser as hastes compridas, parte da técnica pode-se suplementar usando a madeira.

As cabeças de archa de borracha (quando menos as que nós temos) são perigosas na cutelada, mesmo sendo borracha: a força de panca duma haste faz com que mesmo o que parez um toque leve possa ferir uma mão, ou mesmo deixar inconsciênte a alguém se dá na cabeça: compre ter cuidado com elas. Por contra, as suas pontas são seguras na estocada.

As cabeças de ferro são, evidentemente, perigosas, mesmo sem estarem aguçadas — porém, a rigidez permite trabalhar melhor certas peças. São adequadas para demonstrações ou trabalho técnico. Também se assemelham mais ao peso real da ferramenta, já que a borracha é ligeira.

As hastes nuas (as Stangen, sem ferragens) são tão perigosas como podem ser, já que se trata da arma em si própria. Isto quer dizer, novamente, que compre ter cuidado com elas. Caem na mesma categoria que as hastes com cabeças de ferro.

 

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