Algumas reflexões sobre sparring e etiqueta

Nota do Tradutor: Esta é uma tradução (autorizada) do artigo do Keith Farrell Some thoughts about sparring and etiquette, já que posso assinar ao 100% as suas reflexões e queria ter uma versão na nossa língua disponível para o estudantado da Arte do Combate. Imagino que será também de utilidade para outros grupos de HEMA lusófonos. Se gostas do artigo, podes querer achegar um par de euros para o café do Keith.
A imagem de destaque do artigo é um abraço entre o Keith Farrell e o Jacopo Penso no TaurHEMAchia de 2017, por Andrea Boschetti.

Praticamente todos os clubes de HEMA praticam algum tipo de sparring ou jogo livre, e todos têm alguma forma de etiqueta que governa como as pessoas se comportam e como lidam com as situações que surgem durante os assaltos.

É muito fácil acomodar-se na forma como as cousas são feitas no nosso clube e pensar que isso é «o normal» em toda a comunidade — mas se visitas outro clube ou participas de um evento, rapidamente vás ver que outras pessoas parecem fazer as cousas de forma diferente.

Acho que vale a pena pensar na etiqueta que o teu clube tem para o jogo livre. Por que achas que as cousas são feitas como são feitas, e em quê consistem essas regras ou comportamentos?

O que fazemos antes de combater?

Simplesmente encontras uma pessoa disposta e já começais o assalto? Ou seria melhor conversar rapidamente antes de começar, para ter certeza de que há mútuo acordo acerca dos detalhes?

Eu costumo ter uma palavra rápida com a outra pessoa antes de começarmos. É uma grande oportunidade para verificar os equipamentos de proteção que vai (ou não!) usar, e ter certeza de que há acordo sobre a velocidade e intensidade desejadas. Também é muito útil mencionar quaisquer lesões ou limitações, para que este tipo de informação fique presente, e assim evitar mais danos ou problemas durante o assalto.

Para ser honesto, esta é uma das cousas mais importantes que podes fazer para tornar o sparring mais seguro e produtivo. Uma conversa rápida, de dez segundos ou menos, e podes descansar na certeza de que ambas pessoas vão jogar ao mesmo jogo.

Como começar o assalto?

Eu acho que é saudável começar o combate saudando a outra pessoa, a reconhecer que a luta dá começo e também como mostra de respeito. Porém, antes de fazer cousa nenhuma com a espada, acho inteligente colocar a máscara de esgrima na cabeça se ainda não estiver lá!

Já vi alguns «quase acidentes» ao longo dos anos em que as pessoas não usaram máscaras e moveram-se para iniciar diferentes saudações ou apertos de mão e, inesperadamente, uma espada passa muito perto do rosto de alguém. Não é preciso esforço nenhum para remover o risco da equação: basta colocar a máscara antes de fazer QUALQUER cousa com uma espada, incluindo a saudação.

Assim que a máscara estiver segura na tua cabeça, deves fazer uma rápida lista de verificação mental para ter certeza de que também vestes todos os outros equipamentos. Luvas? Já vi pessoas esquecerem-se delas após precisar das mãos para colocar a máscara. Depois verificar o teu próprio equipamento, dá uma olhada rápida no da tua parceira e certifica-te de que esteja usando máscara e luvas. Não é apenas o seu problema se esquecem de vestir algo — tu também és responsável das pessoas com que partilhas treino.

Só deves fazer a saudação quando tiveres certeza de que o teu equipamento e o da outra pessoa estão prontos para combater, e tenhas vontade de iniciar o jogo livre. Quando seja assim, faz a tua saudação. Após a fazer é quando podes começar o assalto — mas não antes de ambas as pessoas terem saudado.

Em termos da saudação em si, eu prefiro algo simples. Costumo erguer a minha espada na frente do rosto, empurro-a um pouco para frente em direção à minha parceira, e coloco-me em postura de combater. Não há necessidade de cruzar as espadas, não há necessidade de agitar a tua espada como se fosses o Arnold Rimmer a saudar, não há necessidade de saudar toda a outra gente na sala. É melhor agires de forma breve e direta, indicando à tua parceira que já queres começar e, então, quando ela também indique que está pronta, podes começar.

Como lidar com os toques?

Existem várias maneiras diferentes de lidar com os toques durante o jogo livre. Podes lançar um outro golpe a continuação [afterblow] ou não. Podes permitir um segundo golpe além do primeiro, ou podes parar de atacar depois que o primeiro golpe acertar. Podeis voltar às posições iniciais ou apenas dar um passo para trás para ganhar um pouco de espaço antes de começar de novo. Podes fazer uma saudação completa para reconhecer um acerto, reconhecê-lo informalmente ou mesmo não fazer nada para reconhecê-lo.

Clubes diferentes têm maneiras radicalmente diferentes de lidar com isto, polo que pode ser bom discutir brevemente a questão antes de começar.

No meu clube, geralmente permitimos um golpe posterior de forma amigável, mas esperamos que ambas pessoas se separem um ou dois passos e que a que foi atingida reconheça o que aconteceu. Qualquer cousa além disso (saudações ostentosas, por exemplo, ou retornar aos cantos desde os que iniciou o combate) é amplamente supérflua; no entanto, é importante para nós marcarmos que um acerto aconteceu e, portanto, terminar essa troca e permitir que uma nova troca comece de novo.

E como lidar com toques duplos? Novamente, clubes diferentes lidarão com isto de forma diferente. No meu clube, espero que ambas pessoas reconheçam que foram atingidas, porque foi precisamente isso o que aconteceu.

Algo do que particularmente não gosto é quando uma pessoa dá as costas para a outra, ao voltar ao ponto de partida. Isso perturba-me imensamente, pois sinto que virar as costas para alguém durante um combate é estúpido e desrespeitoso. Se eu tivesse feito isso durante qualquer treinamento de karaté, os meus instrutores teriam-me gritado (com razão), e as parceiras de treinamento (com razão) teriam-se sentido desconsideradas e desrespeitadas. No golfe, ficas a olhara para a bola até ver onde caiu. Na arquearia, ficas a olhar no alvo até ver onde a flecha cai. No combate, deves ficar de olho na oponente até que o assalto termine definitivamente.

É claro que alguns clubes não veem problema em virar as costas para a parceira entre toques. Se essa é a etiqueta do clube, então que seja assim — eu simplesmente não gosto, e esse é o meu problema se participo em sessões de jogo livre em clubes onde isso é aceitável. Mas no meu clube, vou repreender-te se te vejo fazer isso.

É extremamente importante saber qual é a etiqueta do clube ou evento em que estás a participar e adequar o teu comportamento às regras locais. Nenhum clube deve mudar as suas regras para corresponder ao costumas fazer noutro lugar: a responsabilidade é inteiramente a tua, como visitante, de modificar o que estás a fazer para se alinhar com a etiqueta e regras locais.

Como lidar com situações incómodas?

O que fazer numa situação em que alguém está a agir perigosamente, batendo com muita força ou fazendo-te sentir desconfortável?

Se eu sinto a necessidade de falar com a minha parceira de treino sobre algo, talvez para pedir uma intensidade menor ou para lembrar que deve prestar atenção em algo em que deveria estar a trabalhar, então geralmente faço um sinal mostrando que quero falar.

Eu tendo a tirar a minha mão esquerda da espada e erguer a palma num gesto de «stop» bem universal, enquanto deixo a minha espada de ponta para o chão de uma forma não ameaçadora. Assim que a outra pessoa vir isso e para de se mover em modo de combate, vou chamá-la com a mão esquerda e dar um passo à frente, certificando-me de que a minha espada permaneça a apontar para o chão, sem ameaçar. Então falamos o que deva ser dito e depois podemos voltar ao combate.

Definitivamente prefiro que o meu estudantado converse entre si no meio de um combate para resolver um problema, do que alguém continuar a agir de forma insegura e deixando a outra pessoa desconfortável. Prefiro que os meus alunos falem e iniciem uma discussão rápida do que ter que arrefecer os temperamentos e «lidar com o problema» quando a questão potencialmente escale.

E, se simplesmente não for possível resolver a situação ou comportamento que te deixa desconfortável, para de combater com a pessoa. Saúda, dá um passo para trás e termina o assalto. Não tens por que continuar a combater com uma pessoa que achas perigosa, mal-comportada ou problemática.

Um pensamento final sobre isto é que, se sou eu quem comete um erro durante jogo livre e faço algo que não considere apropriado ou muito arriscado, ou que possa ter deixado a outra pessoa desconfortável, vou sinalizar para fazer uma pausa e oferecer um pedido de desculpas. Às vezes, até mesmo as melhores esgrimistas ou instrutoras podem cometer erros, ou perder o controle por um momento! Não perdemos nada ao oferecer um pedido de desculpas rápido, mas genuíno, para mostrar que erros como esse não foram intencionais.

Costumo ser muito mais indulgente nos combates se a outra pessoa se desculpa após bater com força demais, ou com entusiasmo demais. Claro, se continua a se desculpar pola mesma cousa todo o tempo, isso não é ótimo: talvez peça para se esforçarem mais em evitar o comportamento problemático, talvez simplesmente peça mais três trocas para podermos encerrar o assalto. Mas um pedido de desculpas genuíno mostra-me que a outra pessoa não está apenas sendo idiota e posso perdoar muitos mais os erros ou elementos estranhos, ou desconfortáveis.

E pedir desculpas quando eu cometo erros significa que as minhas parceiras vão-me estender a mesma gentileza quando eu não estiver na minha melhor forma.

Como terminar o combate?

Os combates geralmente chegam à sua conclusão de uma das três maneiras: ao transcorrer um determinado período (um alarme ou alguém avisa), no final de um determinado número de trocas (após a 10.ª troca, por exemplo), ou diretamente quando alguma das pessoas acha que já teve suficiente. As duas primeiras opções são boas e simples, mas a terceira opção, a do combate um tanto aberto, pode ser difícil de concluir.

Nessa situação, geralmente faço um sinal para a outra pessoa a mostrar que quero conversar e, a seguir, proponho “mais três trocas?” Isso geralmente é bastante aceitável, embora se a outra pessoa estiver com dificuldades, ele pode responder com “ufa, só mais um, por favor?” ou algo assim. Eu acredito que é apenas razoável parar no ponto mais cedo solicitado, ao invés de forçar alguém a lutar além do que sente que pode lidar com segurança. E então combatemos o número combinado de trocas e terminamos.

Quando chega a hora de terminar, acho melhor dar um passo para trás para abrir espaço, e depois saudar. A saudação mostra que pola tua parte o combate terminou, e mais uma vez é um sinal de respeito e agradecimento polo tempo e esforço dedicado a combater contigo.

Porém, assim como na saudação do início do combate, deves manter a máscara posta! Novamente, eu já vi muitos «quase acidentes» em que duas esgrimistas terminaram um combate, uma começa a saudar levantando a espada com a ponta para a frente ao tempo que a outra pessoa tira a máscara e começa a dar um passo à frente para dar um aperto de mão. Isso não deve acontecer. Apenas mantém a tua máscara posta até todo o mundo finalizar de mover as espadas.

Então, no meu clube, mantemos as nossas máscaras postas, damos um passo para trás, saudamos e depois tiramos a máscara.

Em condições normais e não pandêmicas, pode ser inteiramente apropriado avançar nessa fase (com as espadas apontando para o chão ou inteiramente deitadas no chão!) e apertar as mãos (ou tocar os punhos, com luvas grossas), ou oferecer um abraço se for alguém que conheces bem.

Esta pode ser uma oportunidade ideal para fazer uma troca de impressões rápida e rever o que aconteceu. Gosto de assinalar às minhas parceiras qualquer cousa de que gostei do seu desempenho e, em seguida, perguntar se desejam um conselho para melhorar. Não começo apenas dizendo o que devem fazer melhor, porque às vezes já as próprias pessoas saberão e podem não querer ouvir. Acho mais eficaz dizer algo genuíno e honesto sobre o que gostei no seu desempenho e, em seguida, oferecer uma crítica construtiva (mas apenas se quiserem ouvi-la).

Logicamente, é melhor sair da área para ter esta conversa. Provavelmente faz mais sentido saudar, tirar as máscaras, dar aquele aperto de mão ou abraço rápido (ou algo apropriado para Covid) e, em seguida, mover-se ambas pessoas e o seu equipamento para o lado para que outras possam entrar na pista de jogo livre. Desta forma podes falar sem causar problemas para ninguém.

Conclusões

Este artigo descreve a forma em que gosto de ver os combates conduzirem-se em termos de etiqueta no meu clube. Espero que as explicações ajudem a mostrar porque acho que essa etiqueta é um bom conjunto de regras para governar o jogo livre num clube ou evento.

Qual é a etiqueta no teu clube? Tens elementos adicionais que não estão descritos aqui ou lidas com algum deles de maneira diferente? Ignoras qualquer desses elementos? Em caso afirmativo, porquê?

E talvez a pergunta mais interessante: seja qual for a etiqueta de jogo livre no teu clube, segue-la «porque sim», ou já pensaste em como em definir a etiqueta para atingir objetivos específicos?

Tenho verdadeiro interesse em ouvir a tua opinião sobre o assunto!

 

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[ Nota do Tradutor: Esta é uma tradução (autorizada) do artigo do Keith Farrell Some thoughts about sparring and etiquette, já que posso assinar ao 100% as suas reflexões e queria ter uma versão na nossa língua disponível para o estudantado da Arte do Combate. Imagino que será também de utilidade para outros grupos de HEMA lusófonos. Se gostas do artigo, podes querer achegar um par de euros para o café do Keith. ]

A máscara de HEMA que (ainda) não existe

Uma pessoa estava a perguntar num grupo de debate se uma máscara de esgrima desportiva era suficiente para começar a treinar HEMA. Várias outras pessoas sairam a avisar de que não, de que necessitava uma coifa ou acolchoamento adicional, de que em grupos X não era permitida uma máscara de esgrima desportiva, etc.

Ainda que, em geral, estas pessoas estavam a dar conselhos válidos, estava a faltar uma visão de conjunto do que são as máscaras de esgrima desportiva, do que se necessita numa máscara de HEMA, e de qual é o estado do consenso na comunidade internacional, pelo que escrevi uma resposta um bocado longa que, acho, pode ser útil para referência futura, pelo que aí fica:

Olá a todos, eu tenho uma duvida, uma mascara normal de esgrima olímpica serve para a pratica de HEMA? Como eu faço esgrima eu tenho uma dessas, queria saber se eu teria problemas com ela. Se alguém já teve experiencias com esse tipo de mascara e puder compartilhar seria ótimo.
Estou pensando em fazer algum tipo de overlay pra proteger a nuca, e também o topo da mascara.
É uma mascara não fie da fleche.

Três ideias rápidas:

  1. Serve para começares.
  2. Pergunta sempre, e segue as indicações, do grupo de HEMA com que vaias treinar.
  3. Se achas que estás a receber golpes mais fortes do que gostarias, detém a atividade, conversa com a outra pessoa para reduzir a força e, se isso não serve, procura outra parceira.

Mais em profundidade:

a) Não existe uma regulamentação estándar internacional a definir o que é aceite ou não em HEMA. Só normativas de grupos mais ou menos grandes, e muitas opiniões individuais. Portanto, há liberdade para usar o que cada quem ache bom e lhe seja aceite nos contextos (aulas, encontros, competições) nos que quer participar.

b) Dito o anterior, há um *abrumador* consenso no uso de máscaras de esgrima semelhantes à que mostras na imagem. Portanto, para começar serve bem.

c) Adicionar acolchoamento interior é, certamente, uma possibilidade, que depende da preferência individual. Eu conheço um par de pessoas a usar. A maioria da gente que conheço (centos de pessoas) não usa acolchoamento interior. Não vi nenhuma regulamentação local (clubes, federações, torneios) a exigir o uso, mas com certeza algures algum coletivo haverá a exigir. Isso não quer dizer que seja a norma.

d) O que sim é, novamente, parte do consenso é que a máscara requer qualquer tipo de proteção para a caluga (como já sabes, porque dizias que ias construir uma). Há várias soluções diferentes (e muitas feitas na casa), mas o mais habitual é ver algo semelhante a uma proteção de teinador de esgrima desportiva com cobertura para a caluga acrescentada. Isto adiciona um acolchoamento exterior, e talvez é por isso que menos gente leva acolchoamento interior.

A questão da proteção na caluga é um consenso menos forte que o da máscara, poque «HEMA» é um termo muito amplo. A gente a treinar espadim não necessita proteção para a caluga. A gente a trabalhar espada longa, certamente devia, especialmente em contextos não competitivos. A gente a usar armas de haste… bom, aí nem a proteção da caluga nem nada é suficiente, mas isto leva-nos ao ponto seguinte:

e) Ainda que *todo o mundo*, em termos práticos, está a usar isto, há também um enorme consenso em que as máscaras de esgrima desportiva não são suficientes. Usamo-las porque são uma alternativa económica e fácil de comprar «off the shelf», e por questões históricas.Também porque são um produto homologado (mas para outra atividade), o que permite, na hora de organizar encontros e competições, fixar um standard bem definido. Mesmo que seja insuficiente, dizer «uma máscara de esgrima CEN2» é mais mensurável e objectivo que «o capacete feito na casa que à organização do evento lhe pareça adequado». Também é algo que a gente que se desloca desde muitos quilómetros pode comprovar na casa, sem chegar ao lugar do evento a descobrir que não é suficiente o equipamento que leva.

f) Desenvolver uma máscara para HEMA de qualidade é um trabalho complexo, e ainda está por completar e por chegar a um consenso internacional — já nem dizer um standard. Houve e há vários intentos, com sucesso variável: «That Guy Masks», dous modelos de máscara de HEMA de Leon Paul (a Titan e a chamada «Melmet»), a máscara de PBT «HEMA Warrior», a máscara com extensão para a caluga «RearGuard», etc.

O importante dos modelos listados acima é compreender:

  • que não há nenhum que encontrasse ainda uma solução a gerir consenso entre a comunidade
  • que são todos experimentais, muitas vezes com controis de qualidade variáveis (mesmo Leon Paul, que é uma marca de equipamento de esgrima desportiva de prestígio, teve problemas nas suas máscaras).
  • que isto é normal, porque estão a experimentar um produto novo e desconhecem os problemas com que se encontram, as cadeias de subministro, os materiais, etc.
  • que nenhum deles é exigido, até onde eu sei, em nenhum coletivo medianamente grande de HEMA no mundo.

g) Relacionado com e), há dous níveis de certificação em máscaras de esgrima desportiva: CEN1 e CEN2. Em geral, a segunda é mais protetiva, e mais cara. Cuidado com misturar estes níveis com a graduação em «newtons»: esta refere-se à teia da barba da máscara, não ao metal, que é o que habitualmente preocupa na nossa prática. Há mais detalhes, para os que refiro este excelente artigo do Keith Farrell.

Em conclusão

Não há um estándar internacional, e a maioria dos grupos utilizam uma proteção de esgrima desportiva que sabem insuficiente.

Estamos a praticar uma arte marcial com armas de aço (e mesmo as de plástico ou madeira podem dar golpes importantes). É muito provável que *nunca* exista um sistema de proteção conta a força excessiva. Não podemos agir como se a proteção que temos (que, repito, é insuficiente) fosse carta branca para bater na outra pessoa com toda a força que queremos.

E adicionalmente: não é necessário. Uma espada real corta, muito bem, sem força excessiva. Quando é usada com mais força da necessária, isto apenas degrada a técnica. A boa técnica *sempre* vai usar apenas a força necessária, e não mais que isso.

Então?

Auto-controlo, confiança, e respeito por nós e polas pessoas com que partilhamos a atividade.

Conversa com a pessoa com quem vaias treinar, e acorda as técnicas que vais usar, onde pode golpear, e com quanta força. Se bate com mais força da que gostas, ou em lugares que tens mal protegidos, deixa de treinar com essa pessoa. Literalmente pode depender a tua vida disso.

Para mais referências, deixo cá a lista de indicações de equipamento que usamos na Arte do Combate.

 

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Na procura da esgrima medieval galega

Há uns dias que o camarada Aldán,1 que treina na Sala Viguesa de Esgrima Antiga, escrevia com uma pergunta muito interessante. A resposta e conversa a seguir deu para bastante proveito polo que, com o seu consentimento, passo a reproduzir cá a sua pergunta e a minha resposta, ligeiramente editada em benefício do artigo:

Levo tempo cunha dúbida detras da orella, xusto me acordei hoxe e queria pedirche a tua opinion:

Sempre me preguntei que tipoloxia de esgrima se practicaria de maneira xeral na Galiza dos s XII a XV. Preguntabame se aplicarian o recollido nos tratados I.33 e 3227a, ou se pola contra seguirian algunha outra tipoloxia.

Por que dou por sentado estas dúas tipoloxias? Por que Pedro de Soutomaior foi un dos primeiros (se non o primeiro) en introducir as armas de fogo na peninsula, e ao parecer debia de ser unha persoa que apostaba pola innovación, así que se coñecia a existencia destas armas e conseguiu traelas non me extrañaria que coñecera e trouxera estes estilos.

Posiblemente isto non teña ningun sentido nin relación causa efecto, tamén dicir que falo sen sustentarme en ningunha evidencia, son puras elucubracións.

Mais recentemente vin en Wiktenauer un novo mestre coñecido como Ibn Hudayl. Parece ser que este mestre escriviu en arabe un libro sobre a guerra onde fala de distinta armas no século XIV. Imaxino que aquí poderiamos atopar pistas sobre o estilo de esgrima da peninsula neses anos.

Ben, como ves non teño nin idea, e gustariame trasladarche a ti esta dubida por se tes algunha opinión o respecto, que tipoloxia, ou tipoloxias de esgrima crees que se desenvolveron en Galiza entre os seculos XII e XV?

Pois… é muito boa pergunta, e uma que eu também me tenho feito.

Até onde sei, de momento não temos documentação do tipo de esgrima tardo-medieval que se praticava nestas terras, polo que tudo tem que ser inferência e supostos prudentes. Seria ótimo se nalgum momento aparecesse, nalgum tombo da Catedral ou algures, um sistema de esgrima autóctone ou provas documentais da prática doutros importados…

Porquê não encontramos tratados galegos

O escritório de Aldán em plena operação de pesquisa — no primeiro plano, a nossa tradução do 3227a para o galego, e no fundo, o cartaz da Zettel que acompanha o livro. No computador, as postas de Fiore.

O certo é que os tratados de esgrima (que eram caros de fabricar, e portanto um objeto para gente rica) seguem o dinheiro. No final da idade média, isso é o eixo das cidades itálicas e a Hansa — quer dizer, justamente atravessando o Sacro Império de sul a norte. Quando, virando o S.XV, o poder económico desloca da centro-europa para o eixo leste-oeste íbero-itálico, aí é onde vão aparecer os novos tratados (e com eles, a Destreza). Depois, com o auge da França moderna, será esta a que tome o relevo, etc… Isto é uma simplificação, é claro, mas serve de grosso quadro para a nossa circunstância.

Outro requerimento importante para a existência de tratados (de qualquer matéria) é que exista um público que os valorize. As universidades (e antes delas as escolas catedralescas, etc) que foram nascendo no ultimo terço da idade média são uma mostra da (relativa) alfabetização da sociedade. Aos poucos vai existindo uma nobreza mais geralmente culta (não é certo que a nobreza medieval fosse profundamente bruta e inculta, como sabemos, mas semelha existir uma generalização, particularmente da cultura escrita, entre a nobreza a medida que avança o medievo — para mostra, ver quem eram os autores das nossas cantigas, ou quem manda traduzir a Crónica de Troia à nossa língua) e uma camada burguesa mais formada (que deve levar os seus livros de contas, os seus pleitos e contratos, etc). Esta é a gente que consume e demanda os livros de esgrima (entre outros), e que os mostra como objetos de ostentação social (no caso da burguesia, provavelmente para se apropriar dos atributos da nobreza, no processo de a substituir).

Somados estes dous fatores (que são apenas a superficialidade do assunto, olho) temos que o apogeu económico da Galiza medieval está por volta do S.XII, polo menos relativa aos povos que tinha ao redor (e com isso refiro-me à Europa ocidental inteira). Aí é onde deveríamos encontrar tratados de esgrima, mas até onde sabemos, ainda não começara a moda de os fazer. Não existiam ainda as universidades, não estava ainda (em termos gerais) suficientemente desenvolvidas as camadas meio-ricas da sociedade, e não existia um acumulação de capital suficiente para fazer que os livros de esgrima, que não são objectos de culto, justifiquem a sua existência.

Após o apogeu da Era Compostelá, a Galiza vai cair em vários séculos de guerras quase continuadas, com a nobreza galaica tentando recuperar a hegemonia (ou resistir o seu deslocamento cara Castela). O apogeu destas será a longa Guerra Petrista da final do S.XIV, e a agonia final prolonga-se nas Guerras Irmadinhas e a guerra em defesa de Joana «a Excelente Senhora». Após o fracasso da politica militar galega nestas, os próprios Reis Católicos procedem à famosa «Doma e Castração» que, a efeitos práticos, elimina essas camadas sociais que puderam, em séculos posteriores, ter produzido ou consumido tratadistica autóctone — iniciando, em suma, os Séculos Escuros, onde a nossa cultura em essência desaparece até o S.XIX.

Isto coloca, do meu ponto de vista, a Galiza dos S.XIV – XV (o início da tratadistica de esgrima que conhecemos) numa situação semelhante à da França na altura. O Reino dos Francos era o reino europeu por excelência, flor da cavalaria, etc. Por quê não aparecem os primeiros tratados de esgrima nele?2 Em parte porque não existe uma distribuição de capital entre as camadas altas da população semelhante à do Sacro Império (mais descentralizado, com muitos nobres e burgueses, e com esse eixo comercial norte-sul). Em parte também porque a guerra constante distrai a atenção da gente para matérias mais urgentes: estavam ocupados matando-se como para andar a ler em livros duma esgrima que, afim de contas, era com quase total certeza 99% lazer.

A esgrima que de certo sim era praticada

Então… essa é uma possível explicação de por quê não há (ainda que ogalhá algum dia encontremos algo) material autóctone. Mas, não se estudava esgrima?

Alfredo Erias – desenho de cavaleiro do S.XIV da Igreja de São Francisco de Ourense

Com certeza, sim. Havia espadas, comparáveis às do resto do continente, gente de armas, e gente a combater com elas. Havia, portanto, qualquer tipo de formação ao respeito. A questão é como era essa formação, de onde vinha, quem a ministrava. Para responder a isto seria necessário fazer um estudo a fundo de como estava organizada a sociedade galega na altura, e particularmente as cidades — matéria da que eu conheço pouco (uma de tantas cousas pendentes de aprender).

É possível que existisse um sistema de esgrima autóctone, mas não sabemos. Talvez se praticassem muitos estilos diferentes (quase com total certeza essa era a situação em quase qualquer lugar da Europa na altura). É possível que parte desses estilos fossem importados.

Como ti bem apontas, é importante incidir para a o público geral no fato de a Galiza não ser, na altura, «periferia», nem um lugar atrasado nem longe das vias de comunicação ou dos centros de poder. A Galiza estava em contato direto com a corte inglesa (e, suspeito, com a francesa também), e sempre teve contato com Roma e a península itálica. E, sobra dizer, o contato com Portugal era tal que basicamente era a mesma cousa. Por isso podemos ver arneses como os dos Andrade (especialmente o d’«o Mau»), de altíssima qualidade.

Capa do álbum «Cavaleiros» de Alfredo Erias — no primeiro plano vemos uma archa, espada duma e de duas mãos, adaga de rondel. Atenção também à qualidade dos arneses

Sabemos que o Conde Andeiro estava a cavalo entre Galiza, Portugal e Inglaterra. Era político, e nessa época cabe supor-lhe sequer um pouco de interesse no assunto marcial. Há outros muitos exemplos, claro. A questão é: puderem estas gentes ter importado algum dos estilos que temos documentados? Não é improvável, mas novamente nada temos documentado.

É possível, por exemplo, que dada a ligação inglesa, nalgum momento tivéssemos algum contato com o tipo de esgrima recolhida no Man yt wol, o Cotton Titus e o Ledall. Há quem quer fazer isto essencialmente idêntico à KdF, mas eu tenho sérias dúvidas ao respeito.3

Também pudera ser que algum nobre, burguês, viajeiro, peregrino ou mercenário trouxesse consigo a Kunst do Império. Ou a esgrima do Grupo de Nuremberga. Ou a do Gladiatoria, ou a de Fiore. Por que não? Se calhar a burguesia nascente das Revoltas Irmadinhas estava a estudar alguma destas escolas, ou uma mistura ou bastardização das mesmas.

Alfredo Erias – desenhos arqueológicos de sepulcros de cavaleiros da Igreja de São Francisco de Lugo, S.XV – atenção à inegável espada de duas mãos

Outro tema é o das fontes árabes. Como bem dizes, há material. Não sei como de aplicável seria para nós: dos povos da península (talvez excetuado o basco), o galego era o menos islamizado, muito virado para o atlantismo e os contatos continentais. Para além disto, estamos a falar já duma época de declínio na hegemonia cultural dos estados islâmicos na península. Tenho dúvidas a respeito do que pudesse chegar à prática da esgrima da Galiza, mas quem sabe… o estudo das fontes árabes (para o que possa trazer para nós ou as HEMA em geral) está por fazer, e é certamente muito necessário. Qualquer cousa tem que existir aí.

Em resumo: se a pergunta é «pudera ser que alguém praticasse a tradição X na Galiza», a minha resposta é «é certamente possível». Estávamos bem conectados, e a troca cultural era importante. Se a pergunta fosse «existiu uma tradição de esgrima autôtone», já duvido mais. É possível — até certo ponto, qualquer pessoa a pegar numa espada e improvisar técnicas de combate mais ou menos elaboradas estava a criar o seu próprio sistema, e portanto por definição era um sistema naturalmente galego. Mas isso sucedia em toda parte, em maior ou menor grau. Certamente também sucedeu na Galiza, mas o debate não é esse. Quando falamos de HEMA estamos a falar dos sistemas dos que ficou registo documental. Nesse sentido há que dizer, tristemente, que não me consta termos nada.

Até agora, é claro.

 

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