Algumas reflexões sobre sparring e etiqueta

Nota do Tradutor: Esta é uma tradução (autorizada) do artigo do Keith Farrell Some thoughts about sparring and etiquette, já que posso assinar ao 100% as suas reflexões e queria ter uma versão na nossa língua disponível para o estudantado da Arte do Combate. Imagino que será também de utilidade para outros grupos de HEMA lusófonos. Se gostas do artigo, podes querer achegar um par de euros para o café do Keith.
A imagem de destaque do artigo é um abraço entre o Keith Farrell e o Jacopo Penso no TaurHEMAchia de 2017, por Andrea Boschetti.

Praticamente todos os clubes de HEMA praticam algum tipo de sparring ou jogo livre, e todos têm alguma forma de etiqueta que governa como as pessoas se comportam e como lidam com as situações que surgem durante os assaltos.

É muito fácil acomodar-se na forma como as cousas são feitas no nosso clube e pensar que isso é «o normal» em toda a comunidade — mas se visitas outro clube ou participas de um evento, rapidamente vás ver que outras pessoas parecem fazer as cousas de forma diferente.

Acho que vale a pena pensar na etiqueta que o teu clube tem para o jogo livre. Por que achas que as cousas são feitas como são feitas, e em quê consistem essas regras ou comportamentos?

O que fazemos antes de combater?

Simplesmente encontras uma pessoa disposta e já começais o assalto? Ou seria melhor conversar rapidamente antes de começar, para ter certeza de que há mútuo acordo acerca dos detalhes?

Eu costumo ter uma palavra rápida com a outra pessoa antes de começarmos. É uma grande oportunidade para verificar os equipamentos de proteção que vai (ou não!) usar, e ter certeza de que há acordo sobre a velocidade e intensidade desejadas. Também é muito útil mencionar quaisquer lesões ou limitações, para que este tipo de informação fique presente, e assim evitar mais danos ou problemas durante o assalto.

Para ser honesto, esta é uma das cousas mais importantes que podes fazer para tornar o sparring mais seguro e produtivo. Uma conversa rápida, de dez segundos ou menos, e podes descansar na certeza de que ambas pessoas vão jogar ao mesmo jogo.

Como começar o assalto?

Eu acho que é saudável começar o combate saudando a outra pessoa, a reconhecer que a luta dá começo e também como mostra de respeito. Porém, antes de fazer cousa nenhuma com a espada, acho inteligente colocar a máscara de esgrima na cabeça se ainda não estiver lá!

Já vi alguns «quase acidentes» ao longo dos anos em que as pessoas não usaram máscaras e moveram-se para iniciar diferentes saudações ou apertos de mão e, inesperadamente, uma espada passa muito perto do rosto de alguém. Não é preciso esforço nenhum para remover o risco da equação: basta colocar a máscara antes de fazer QUALQUER cousa com uma espada, incluindo a saudação.

Assim que a máscara estiver segura na tua cabeça, deves fazer uma rápida lista de verificação mental para ter certeza de que também vestes todos os outros equipamentos. Luvas? Já vi pessoas esquecerem-se delas após precisar das mãos para colocar a máscara. Depois verificar o teu próprio equipamento, dá uma olhada rápida no da tua parceira e certifica-te de que esteja usando máscara e luvas. Não é apenas o seu problema se esquecem de vestir algo — tu também és responsável das pessoas com que partilhas treino.

Só deves fazer a saudação quando tiveres certeza de que o teu equipamento e o da outra pessoa estão prontos para combater, e tenhas vontade de iniciar o jogo livre. Quando seja assim, faz a tua saudação. Após a fazer é quando podes começar o assalto — mas não antes de ambas as pessoas terem saudado.

Em termos da saudação em si, eu prefiro algo simples. Costumo erguer a minha espada na frente do rosto, empurro-a um pouco para frente em direção à minha parceira, e coloco-me em postura de combater. Não há necessidade de cruzar as espadas, não há necessidade de agitar a tua espada como se fosses o Arnold Rimmer a saudar, não há necessidade de saudar toda a outra gente na sala. É melhor agires de forma breve e direta, indicando à tua parceira que já queres começar e, então, quando ela também indique que está pronta, podes começar.

Como lidar com os toques?

Existem várias maneiras diferentes de lidar com os toques durante o jogo livre. Podes lançar um outro golpe a continuação [afterblow] ou não. Podes permitir um segundo golpe além do primeiro, ou podes parar de atacar depois que o primeiro golpe acertar. Podeis voltar às posições iniciais ou apenas dar um passo para trás para ganhar um pouco de espaço antes de começar de novo. Podes fazer uma saudação completa para reconhecer um acerto, reconhecê-lo informalmente ou mesmo não fazer nada para reconhecê-lo.

Clubes diferentes têm maneiras radicalmente diferentes de lidar com isto, polo que pode ser bom discutir brevemente a questão antes de começar.

No meu clube, geralmente permitimos um golpe posterior de forma amigável, mas esperamos que ambas pessoas se separem um ou dois passos e que a que foi atingida reconheça o que aconteceu. Qualquer cousa além disso (saudações ostentosas, por exemplo, ou retornar aos cantos desde os que iniciou o combate) é amplamente supérflua; no entanto, é importante para nós marcarmos que um acerto aconteceu e, portanto, terminar essa troca e permitir que uma nova troca comece de novo.

E como lidar com toques duplos? Novamente, clubes diferentes lidarão com isto de forma diferente. No meu clube, espero que ambas pessoas reconheçam que foram atingidas, porque foi precisamente isso o que aconteceu.

Algo do que particularmente não gosto é quando uma pessoa dá as costas para a outra, ao voltar ao ponto de partida. Isso perturba-me imensamente, pois sinto que virar as costas para alguém durante um combate é estúpido e desrespeitoso. Se eu tivesse feito isso durante qualquer treinamento de karaté, os meus instrutores teriam-me gritado (com razão), e as parceiras de treinamento (com razão) teriam-se sentido desconsideradas e desrespeitadas. No golfe, ficas a olhara para a bola até ver onde caiu. Na arquearia, ficas a olhar no alvo até ver onde a flecha cai. No combate, deves ficar de olho na oponente até que o assalto termine definitivamente.

É claro que alguns clubes não veem problema em virar as costas para a parceira entre toques. Se essa é a etiqueta do clube, então que seja assim — eu simplesmente não gosto, e esse é o meu problema se participo em sessões de jogo livre em clubes onde isso é aceitável. Mas no meu clube, vou repreender-te se te vejo fazer isso.

É extremamente importante saber qual é a etiqueta do clube ou evento em que estás a participar e adequar o teu comportamento às regras locais. Nenhum clube deve mudar as suas regras para corresponder ao costumas fazer noutro lugar: a responsabilidade é inteiramente a tua, como visitante, de modificar o que estás a fazer para se alinhar com a etiqueta e regras locais.

Como lidar com situações incómodas?

O que fazer numa situação em que alguém está a agir perigosamente, batendo com muita força ou fazendo-te sentir desconfortável?

Se eu sinto a necessidade de falar com a minha parceira de treino sobre algo, talvez para pedir uma intensidade menor ou para lembrar que deve prestar atenção em algo em que deveria estar a trabalhar, então geralmente faço um sinal mostrando que quero falar.

Eu tendo a tirar a minha mão esquerda da espada e erguer a palma num gesto de «stop» bem universal, enquanto deixo a minha espada de ponta para o chão de uma forma não ameaçadora. Assim que a outra pessoa vir isso e para de se mover em modo de combate, vou chamá-la com a mão esquerda e dar um passo à frente, certificando-me de que a minha espada permaneça a apontar para o chão, sem ameaçar. Então falamos o que deva ser dito e depois podemos voltar ao combate.

Definitivamente prefiro que o meu estudantado converse entre si no meio de um combate para resolver um problema, do que alguém continuar a agir de forma insegura e deixando a outra pessoa desconfortável. Prefiro que os meus alunos falem e iniciem uma discussão rápida do que ter que arrefecer os temperamentos e «lidar com o problema» quando a questão potencialmente escale.

E, se simplesmente não for possível resolver a situação ou comportamento que te deixa desconfortável, para de combater com a pessoa. Saúda, dá um passo para trás e termina o assalto. Não tens por que continuar a combater com uma pessoa que achas perigosa, mal-comportada ou problemática.

Um pensamento final sobre isto é que, se sou eu quem comete um erro durante jogo livre e faço algo que não considere apropriado ou muito arriscado, ou que possa ter deixado a outra pessoa desconfortável, vou sinalizar para fazer uma pausa e oferecer um pedido de desculpas. Às vezes, até mesmo as melhores esgrimistas ou instrutoras podem cometer erros, ou perder o controle por um momento! Não perdemos nada ao oferecer um pedido de desculpas rápido, mas genuíno, para mostrar que erros como esse não foram intencionais.

Costumo ser muito mais indulgente nos combates se a outra pessoa se desculpa após bater com força demais, ou com entusiasmo demais. Claro, se continua a se desculpar pola mesma cousa todo o tempo, isso não é ótimo: talvez peça para se esforçarem mais em evitar o comportamento problemático, talvez simplesmente peça mais três trocas para podermos encerrar o assalto. Mas um pedido de desculpas genuíno mostra-me que a outra pessoa não está apenas sendo idiota e posso perdoar muitos mais os erros ou elementos estranhos, ou desconfortáveis.

E pedir desculpas quando eu cometo erros significa que as minhas parceiras vão-me estender a mesma gentileza quando eu não estiver na minha melhor forma.

Como terminar o combate?

Os combates geralmente chegam à sua conclusão de uma das três maneiras: ao transcorrer um determinado período (um alarme ou alguém avisa), no final de um determinado número de trocas (após a 10.ª troca, por exemplo), ou diretamente quando alguma das pessoas acha que já teve suficiente. As duas primeiras opções são boas e simples, mas a terceira opção, a do combate um tanto aberto, pode ser difícil de concluir.

Nessa situação, geralmente faço um sinal para a outra pessoa a mostrar que quero conversar e, a seguir, proponho “mais três trocas?” Isso geralmente é bastante aceitável, embora se a outra pessoa estiver com dificuldades, ele pode responder com “ufa, só mais um, por favor?” ou algo assim. Eu acredito que é apenas razoável parar no ponto mais cedo solicitado, ao invés de forçar alguém a lutar além do que sente que pode lidar com segurança. E então combatemos o número combinado de trocas e terminamos.

Quando chega a hora de terminar, acho melhor dar um passo para trás para abrir espaço, e depois saudar. A saudação mostra que pola tua parte o combate terminou, e mais uma vez é um sinal de respeito e agradecimento polo tempo e esforço dedicado a combater contigo.

Porém, assim como na saudação do início do combate, deves manter a máscara posta! Novamente, eu já vi muitos «quase acidentes» em que duas esgrimistas terminaram um combate, uma começa a saudar levantando a espada com a ponta para a frente ao tempo que a outra pessoa tira a máscara e começa a dar um passo à frente para dar um aperto de mão. Isso não deve acontecer. Apenas mantém a tua máscara posta até todo o mundo finalizar de mover as espadas.

Então, no meu clube, mantemos as nossas máscaras postas, damos um passo para trás, saudamos e depois tiramos a máscara.

Em condições normais e não pandêmicas, pode ser inteiramente apropriado avançar nessa fase (com as espadas apontando para o chão ou inteiramente deitadas no chão!) e apertar as mãos (ou tocar os punhos, com luvas grossas), ou oferecer um abraço se for alguém que conheces bem.

Esta pode ser uma oportunidade ideal para fazer uma troca de impressões rápida e rever o que aconteceu. Gosto de assinalar às minhas parceiras qualquer cousa de que gostei do seu desempenho e, em seguida, perguntar se desejam um conselho para melhorar. Não começo apenas dizendo o que devem fazer melhor, porque às vezes já as próprias pessoas saberão e podem não querer ouvir. Acho mais eficaz dizer algo genuíno e honesto sobre o que gostei no seu desempenho e, em seguida, oferecer uma crítica construtiva (mas apenas se quiserem ouvi-la).

Logicamente, é melhor sair da área para ter esta conversa. Provavelmente faz mais sentido saudar, tirar as máscaras, dar aquele aperto de mão ou abraço rápido (ou algo apropriado para Covid) e, em seguida, mover-se ambas pessoas e o seu equipamento para o lado para que outras possam entrar na pista de jogo livre. Desta forma podes falar sem causar problemas para ninguém.

Conclusões

Este artigo descreve a forma em que gosto de ver os combates conduzirem-se em termos de etiqueta no meu clube. Espero que as explicações ajudem a mostrar porque acho que essa etiqueta é um bom conjunto de regras para governar o jogo livre num clube ou evento.

Qual é a etiqueta no teu clube? Tens elementos adicionais que não estão descritos aqui ou lidas com algum deles de maneira diferente? Ignoras qualquer desses elementos? Em caso afirmativo, porquê?

E talvez a pergunta mais interessante: seja qual for a etiqueta de jogo livre no teu clube, segue-la «porque sim», ou já pensaste em como em definir a etiqueta para atingir objetivos específicos?

Tenho verdadeiro interesse em ouvir a tua opinião sobre o assunto!

 

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[ Nota do Tradutor: Esta é uma tradução (autorizada) do artigo do Keith Farrell Some thoughts about sparring and etiquette, já que posso assinar ao 100% as suas reflexões e queria ter uma versão na nossa língua disponível para o estudantado da Arte do Combate. Imagino que será também de utilidade para outros grupos de HEMA lusófonos. Se gostas do artigo, podes querer achegar um par de euros para o café do Keith. ]

Guiar o carro e jogar a espada

Há pouco passei os exames necessários para obter a carta de condução. Era uma tarefa que tinha pendente desde havia muitos anos. Até o presente não achara realmente necessária, deslocando-me em transporte público, mas a vida muda e novas motivações surgem.

A minha mãe não gostou nada quando lhe enviei esta fotografia com a legenda «Licença para matar!».

Devo reconhecer que nunca foi um assunto do meu interesse, e em consequência não prestei nunca atenção nenhuma as questões relativas os carros (funcionamento, controlos) e a estrada (marcas viárias, códigos explícitos e implícitos, e até orientação básica). Portanto, aproximei a este processo desde uma ignorância bastante absoluta. E no aprendizado tive, várias vezes, sensações que me traziam memórias dos treinos de artes marciais.

Senti essa falha de familiaridade inicial ao ter nas mãos uma ferramenta totalmente nova, desconhecida, cujo funcionamento, medidas, feedback e comportamento desconhecia. Necessitei tempo e repetição de movimentos para me fazer com as distâncias, saber até onde chegam partes dela, quais são forças necessárias para a pôr em movimento e as inércias uma vez que já está, etc.

«Toda Arte tem Distância e Medida» —Johannes Liechtenauer, na Zettel.

Experimentei o desconhecimento das normas de trânsito, a falha de certeza no que fazer. Em ter que aprender a ler um novo sistema de sinais e responder a elas com agilidade. Fui ciente que tinha um conhecimento teórico de isto tudo, mas que existia uma distância considerável entre conhecer essa teoria e ser quem de a explorar na prática.

E, como em qualquer arte marcial, redescobri o imperativo de observar o que as outras pessoas fazem enquanto eu trabalho: quais são as suas ações e intenções (por vezes não coincidentes), estar alerta e agir em consequência. Aprender, por exemplo, a ler quando um carro vai virar pelos sinais subtis que dá, e não aguardar apenas a que sinalize através do indicador (cousa que muitas vezes não sucede).

A prova.

Recentemente fiz várias viagens longas e tive esse momento de epifania em que descobri que já sabia fazer isso tudo (melhor ou pior, mas suficientemente bem como para poder levar o carro várias horas seguidas, por estradas e autoestradas desconhecidas) e a condução convertia-se nesse fluxo de acções espontâneo, informado polo que sucede no exterior mas ao tempo inconsciente, ou apenas parcialmente consciente. Esses momentos de estado de fluxo, de integração com a arte que seja que estejas a praticar, em que tudo o que estás a fazer vira natural e sem esforço, é para mim uma das recompensas maiores do estudo de qualquer disciplina.

Acho que é importante reflexionar sobre estas cousas. Tenho insistido mais duma vez nas aulas ao meu estudantado que há muitas experiências na vida que «são artes marciais» na forma em que as aproximamos: aprender um novo conjunto de habilidades (como guiar um carro), encarar e resolver conflitos (ou descobrir que não há vitória possível neles e é melhor fugir), melhorar através da auto-disciplina e trabalho sistemático (como aprovar uns exames qualquer), etc.

Não acredito realmente nesse repetido conceito de que as artes marciais tenham qualquer qualidade especial que as faz dar lições para a vida. Mas é certo que todas as experiências que acumulamos interagem entre si, e quando uma delas ocupa um lugar importante na nossa mente com frequência serve de padrão para estruturar, analisar e entender o resto da existência. Imagino que um violinista sentirá o mesmo acerca da música, ou uma carpinteira no trabalho da madeira. Para nós que estudamos a fundo uma arte marcial, é quase inevitável vermos o universo através dela. E isso, acho, facilita a vida, e traz paz.