Pangur Bán

No século IX, um monge irlandês anónimo escreveu, no mosteiro de Reichenau, um poema ao seu gato branco, Pangur Bán, companheiro nas longas e solitárias horas de trabalho sobre textos que, já na altura, eram antigos e de difícil compreensão.

Segue a transcrição do texto original e uma tradução livre da minha mão:

Messe ocus Pangur Bán,
cechtar nathar fria saindan
bíth a menmasam fri seilgg
mu menma céin im saincheirdd.

Caraimse fos ferr cach clú
oc mu lebran leir ingnu
ni foirmtech frimm Pangur Bán
caraid cesin a maccdán.

Orubiam scél cen scís
innar tegdais ar noendís
taithiunn dichrichide clius
ni fristarddam arnáthius.

Gnáth huaraib ar gressaib gal
glenaid luch inna línsam
os mé dufuit im lín chéin
dliged ndoraid cu ndronchéill.

Fuachaidsem fri frega fál
a rosc anglése comlán
fuachimm chein fri fegi fis
mu rosc reil cesu imdis.

Faelidsem cu ndene dul
hinglen luch inna gerchrub
hi tucu cheist ndoraid ndil
os me chene am faelid.

Cia beimmi amin nach ré,
ni derban cách a chele
maith la cechtar nár a dán,
subaigthius a óenurán.

He fesin as choimsid dáu
in muid dungní cach oenláu
du thabairt doraid du glé
for mu mud cein am messe.

Eu, e mais Pangur o Gato,
trabalhamos de modo grato:
ele, ávido, a caçar os ratos;
eu a escrever em livros raros.

Não há gesta de glória vaidosa
maior que a escrita em verso ou prosa —
mas Pangur Bán não tem inveja:
fica contente com caçar a presa.

E passamos horas, sós na casa
absortos cada um na nossa ânsia:
ele, certeiro, em encher o ventre;
eu, ausente, a nutrir a mente.

Às vezes sucede que desafia um rato
as poutas velozes do meu branco gato.
Nas palavras, nos livros, sucede o mesmo
quando não consigo traduzir um termo.

Descansa a olhada, de momento frustrada,
no oco da parede onde o rato escapara.
E da mesma forma passo a noite a bater
contra velhos textos o meu pouco saber.

Que alegria invade o coração do meu gato
quando a presa sai por fim do buraco!
E igual eu me sinto, orgulhoso e listo,
quando um termo difícil revela o sentido.

E desta forma trabalhamos ambos:
com paciência, em companhia, sem sobressaltos,
cada um envorcado por completo na Arte:
ele na sua, eu na minha parte.

A prática virou Pángur Bán mestre
na arte de caçar roedores silvestres.
Eu ganho, passeninho, maior sabedoria
a trabalhar nos meus textos, noite e dia.

Podes ouvir uma versão (moderna) do poema musicado por Pádraigín Ní Uallacháin, do seu álbume Songs of the Scribe. Há também uma pouca (mais não muita) de informação adicional no artigo correspondente da Wikipédia, incluída uma tradução para o inglês.

 

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Preparativos para um duelo, por Talhoffer (2)

Hans Talhoffer (1410/15 — 1482+) foi, entre outras cousas, mestre da arte do combate para nobres que se viram na obriga de se bater em duelo.

«Aqui o Mestre Hans Talhoffer» — MS_Thott.290.2º_101vNão temos certeza do seu vínculo com a tradição de Liechtenauer. Há algumas lições semelhantes, mas muitas discordantes, e está ausente o que carateriza aos discípulos do Alto Mestre: a Zettel comentada. Por contra, Talhoffer escreveu a sua própria Zettel, com alguns versos semelhantes e muitos diferentes. Isto pudera ser indicativo de plágio ou, mais provavelmente, que ambos mestres beberam duma tradição comum.

Os tratados de Talhoffer são geralmente muito gráficos, com pouco texto, e têm o propósito explícito de serem referências técnicas para os seus estudantes, mas também é evidente que pretendem reforçar e assentar a necessidade do seu ofício. As partes textuais, porém, oferecem uma interessantíssima visão a respeito do duelo, e de como alguém que ganhava a vida com ele transmitia essa cultura ao seu estudantado.

Podes consultar mais fragmentos traduzidos da sua obra neste blogue, sob o tag Talhoffer.

Para trunfares no combate:
move-te,1 não descanses2.
Luta se a luta é precisa
e ri se é preciso rir3.
Confia na Arte da Espada
que Talhoffer ensinava,
e não te levem a engano
lições de mestres estranhos.4 5

Eis o segredo da Arte Verdadeira segundo os mestres, em forma fácil de entender, e deve ser guardada com zelo, e é proveitosa, e fica aqui exposta em bom fundamento.6

Quando queiras combater pola vida7 com alguém, deves em primeiro lugar arranjar sítio e data. Depois, equipa-te com quanto material vaias necessitar, e deves fazer isto pessoalmente, e em secreto — não fies em ninguém o que vás fazer, ou quais são as tuas intenções, porque o mundo está cheio de falsidade —, e deves prover-te dumas boas luvas,8 espada e perponto, calças e qualquer outra cousa que pretendas usar. E observa bem que este equipamento seja confortável e adequado, e que atenda à tua preferência,  porque a espada não atende a outra razão que ela mesma, e quer ser livre.9

Quando chegues ao lugar do duelo10 e queiras começar, deixa que a outra parte diga e faça quanta cousa queira, e não afastes a tua vista dela,11 e concentra-te,12 e diga o que diga, não te deixes provocar, e combate com zelo13 pola própria vida, e não lhe permitas descanso, e segue e confia na Arte.14

Não temas os seus ataques e, se te combate a sério, lembra o Zucken para burlar-lhos.15

Hans Talhoffer, homem honrado,16 pode dar fé da verdade disto, porque muitas vezes se viu nesta mesma situação.

—Talhoffer, MS Thott.290.2º, S.XV,
em livre tradução de Diniz Cabreira.

 

 

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Preparativos para um duelo, por Talhoffer (1)

Hans Talhoffer (1410/15 — 1482+) foi, entre outras cousas, mestre da arte do combate para nobres que se viram na obriga de se bater em duelo.

«Aqui o Mestre Hans Talhoffer» — MS_Thott.290.2º_101vNão temos certeza do seu vínculo com a tradição de Liechtenauer. Há algumas lições semelhantes, mas muitas discordantes, e está ausente o que carateriza aos discípulos do Alto Mestre: a Zettel comentada. Por contra, Talhoffer escreveu a sua própria Zettel, com alguns versos semelhantes e muitos diferentes. Isto pudera ser indicativo de plágio ou, mais provavelmente, que ambos mestres beberam duma tradição comum.

Os tratados de Talhoffer são geralmente muito gráficos, com pouco texto, e têm o propósito explícito de serem referências técnicas para os seus estudantes, mas também é evidente que pretendem reforçar e assentar a necessidade do seu ofício. As partes textuais, porém, oferecem uma interessantíssima visão a respeito do duelo, e de como alguém que ganhava a vida com ele transmitia essa cultura ao seu estudantado.

Podes consultar mais fragmentos traduzidos da sua obra neste blogue, sob o tag Talhoffer.

Se és nobre e te vês na obriga de te bater em duelo, deves contratar um mestre que te prepare para o combate. Deves fazer que o mestre jure ensina fielmente a sua arte, e que não vai partilhar com outras pessoas os secretos que a ti ensine.

Deves ter cautela e não cair num excesso de confiança que te leve a fachendear1 por aí dos teus secretos, para evitar traições.2

Deves acordar cedo todos os dias, ir à missa, voltar à casa e almoçar3 um pedaço de pão feito de mel e alfarrobas,4 treinar esforçadamente durante duas horas, comer pouca graxa,5 praticar duas horas mais na tarde e à noite cear6 um pedaço de pão de centeio molhado em água fresca porque melhora o folgo e alarga o peito.7

E chegado o momento do duelo, deves ir até à cidade que melhor aches, e solicitar acolhimento e proteção, e escolta para ti e a gente que te acompanhe.

E o teu mestre deve levar-te até um lugar recolhido, onde te ajoelharás e pedirás a Deus a graça de ter fortuna e vitória.

—Talhoffer, Königsegg Fechtbuch, S.XV,
em livre tradução de Diniz Cabreira.

 

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Recursos

A Zettel de Talhoffer

→ O Königsegg Fechtbuch é um dos vários textos a recolher ensinamentos de Hans Talhoffer. Na forma habitual deste mestre, trata-se dum conjunto de imagens com textos muito breves ou sem eles, mas en duas páginas do princípio traz várias reflexões acerca das cautelas que deve tomar a pessoa que se vai bater em duelo, e também um poema, que aqui reproduzimos.

Um dos pontos interessantes deste poema (além do conteúdo) é o seu início que remete à famosa Zettel de Johannes Liechtenauer. Pudera ser que Talhoffer estivesse iniciado na Arte de Liechtenauer, ou bem que este para compor o seu poema tirasse duma estrutura popular na época, ou mesmo duma tradição existente de poemas mnemotécnicos para ensinar a combater. Isto seria compatível com a visão que presenta o 3227a dum Johannes que «viajou e pesquisou por muitas terras, pois queria aprender a Arte», mas que «não inventou o que aqui está escrito, que já existia há centos de anos».

[A imagem de cabeçalho tem propósito meramente ilustrativo e provém do MS Thott.290.2º, não do Königsegg, porque queria algo a mostrar texto.]

Jovem, aprende
a amar justiça e gente.1

Como corresponde, tem coragem
e guarda-te de que te enganem.2

Ambiciona a inteireza
e esforça-te com dureza
na prática cavaleiresca:

Lança e move pedras,
aprende dança e salta,
luta sem armas,
combate com elas3,
rompe lanças nos torneios
e procura amores belos.4

Para combater necessitas,
como para viver, alegria.
Não aprenderás com medo
da Arte nenhum segredo.5

Deves mostrar coragem
contra quem te ataque.

Para honrar a tua dignidade
leva em bandeira a verdade.6

Desconfia do mal da gente
que a lealdade não entende.

Isto que digo é guia
para militar na justiça.7

Se recebes conselhos, aviso:
considera-os com tino
para poderes dizer
se farão mais mal que bem.8

Talhoffer insiste nisto,
os verdadeiros princípios:

Deves observar-te,
para lutar ou combater.9

Lembra os secretos da Arte;
não acredites em qualquer.

Como um urso põe-te
sem saltar perto e longe.10

A tua força usa
sempre na medida justa.

Estuda com esmero
e olha para este texto
com suficiente frequência,
para servir de referência.

E a partir deste ponto vai aprender Leutold von Königsegg a arte de Combater de mão de Hans Tafhoffer.

—Talhoffer, Königsegg Fechtbuch, S.XV,
em livre tradução de Diniz Cabreira.

 

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Regulamento de Esgrima da Cidade Velha de Praga, 1597

→ Esta é uma versão autorizada dum artigo de Ondřej Vodička titulado 1597, Fencers’ Ordinance of the Old Town of Prague, traduzido por Diniz Cabreira (2021). Entre colchetes [] vão anotações à tradução do texto original feitas por Ondřej, e com números e em notas ao pé clarificações e comentários pola minha parte.

No 28 de julho de 1597, o concelho da Cidade Velha de Praga promulgou o Regulamento dos Esgrimistas a fim de impor a disciplina nos torneios de esgrima (Fechtschule) e controlar os esgrimistas domésticos e errantes.

Realizar um torneio de esgrima na Cidade Velha tradicionalmente era responsabilidade e direito do grémio dos cuteleiros. No entanto, este costume provavelmente estava em declínio desde que o grémio dos Federfechter de Praga surgiu nos anos setenta do século XVI. Os membros desta irmandade combatiam principalmente com espada roupeira, e para ganhar o título de «mestre da espada longa» deviam combater contra um membro da famosa irmandade de São Marcos (Marxbrüder) com sé em Frankfurt, que recebera o monopólio imperial sobre a distribuição destes títulos.

O documento original não sobreviveu. No entanto, o texto foi copiado num dos livros administrativos do concelho da Cidade Velha. O livro foi chamado Kniha pořádkův [O Livro dos Regulamentos] e incorporou cópias de normas selecionadas datadas entre 1476 – 1715. O Livro dos Regulamentos foi infelizmente queimado durante o bombardeio de Praga em 8 de maio de 1945. O texto deste regulamento sobreviveu apenas como um apêndice da publicação Pražští šermíři a mistři šermu [Esgrimistas e mestres de esgrima de Praga] de 1927, da autoria dum esgrimista e historiador de esgrima Jaroslav Tuček (1882 – ca. 1940?).

Vista de Praga por Václav Hollar em 1636.
Original na Galeria Nacional Checa de Praga. Esta cópia da Wikimedia Commons.

Tradução seletiva

O concelho da Cidade Velha de Praga declara e decide que:

1) Existem preguiçosos vindo de outros lugares para Praga, que pretendem organizar torneios de esgrima e ficar ociosos, visitar pousadas e passear à noite. Isso causa muitos escândalos, brigas, feridas e assassinatos.

2) Organizar torneios de esgrima sempre esteve no poder do grémio dos cuteleiros para promover a bravura e uma esgrima viril.

3) O torneio de esgrima foi estabelecido para que os cuteleiros, que vivem uma vida honrada e humilde, possam melhorar as suas habilidades na esgrima.

4) Os esgrimistas mais velhos, eleitos para governar a sociedade de esgrima, devem ser burgueses ou habitantes de longa data da Cidade Velha de Praga e comportar-se com decência.

5) O público dum torneio de esgrima não deve perturbar os esgrimistas.

6) Os esgrimistas que organizam os torneios de esgrima, e em fazendo isso têm poucos rendimentos, devem receber uma quantia justa de dinheiro da taxa cobrada por participar no torneio, para estarem mais dispostos a organizá-lo.

7) Todo esgrimista, seja Federfechter ou Marxbruder, e especialmente os membros dos grémios, que não são preguiçosos, devem ser inscritos num registo especial.

8) Federfechter e Marxbrüder devem juntar-se para organizar um torneio de esgrima todos os domingos e dias feriados.

9) Quem quiser organizar um torneio de esgrima deve perguntar com antecedência aos cuteleiros mais velhos, para poderem acompanhar e endossá-lo perante o Concelho.

10) Atenção especial deve ser dada à reputação do organizador de um torneio de esgrima, para que não seja nem um preguiçoso, nem um causador de problemas, mas um artesão decente.

11) Se houver um desocupado querendo participar de um torneio de esgrima com o propósito apenas de se exibir [«agir como um pavão»] e ganhar dinheiro e viver disso, essa pessoa não deve  ser permitida de fazer parte do torneio.

12) Um torneio de esgrima requer as armas usuais de madeira, como Dussacks, bastões e alabardas, bem como as armas de aço, como espadas1 e roupeiras. Estas armas devem ser mantidas prontas em número suficiente polo grémio dos cuteleiros, com obriga de emprestá-las a quem organize um torneio de esgrima. Se uma arma for danificada ou quebrada durante o torneio, os cuteleiros farão uma nova.

13) Por esse motivo, qualquer pessoa que organizar um torneio de esgrima deve pagar ao grémio dos cuteleiros a taxa indicada de sessenta de Meissner groschen.2 No caso de quebra de uma espada ou roupeira durante o torneio, o organizador paga ao grémio mais trinta kreuzers por fazer uma nova espada e vinte por uma roupeira, porém não há tal pagamento se quebrar uma arma de madeira.

14) Geralmente as pessoas que atendem o torneio são boas e honestas, e até mesmo nobres. É estritamente proibido ao público entrar no meio dos duelos, pois, por ignorar esta regra, muitas pessoas foram feridas ou ficaram cegas. Se alguém infringir esta regra e tiver formação em esgrima, terá proibido participar em torneios por um tempo; se não souber esgrima, essa pessoa será levada perante o Concelho e punida por este.

15) «Há esgrimistas covardes a usarem luvas longas até o côvado, em contra das antigas tradições. Isto fica desde este momento proibido. Quem participar no torneio deve levar luvas a cobrir apenas a mão, para que ninguém descanse a sua esgrima em luvas longas até o côvado.3

16) Ninguém deve ter permissão para participar de um torneio a menos que tenha recebido instrução adequada em esgrima.

17) Quando os esgrimistas fecham a distância não devem se lançar uns contra os outros com raiva, mas devem combater «limpa e longamente» conforme a tradição, sem importar a arma que empunhem.

18) Mestres e estudantes devem agir com solenidade e respeito durante o torneio, sem fazer parvadas4 como sacudir a cabeça ou botar a língua fora.

19) Mestres e estudantes de esgrima devem ficar afastados durante o torneio, Marxbrüder de um lado e Federfechter do lado oposto, para que as pessoas os reconheçam facilmente. Não devem obstruir nem «ficar juntos como gansos» no campo de duelo e, assim, bloquear a visão.

20) Todo esgrimista é obrigado a iniciar o duelo conforme a tradição, ao contrário do labrego, que corre loucamente em busca de uma arma, agarra-a e quer bater com ela como um boi estúpido.

21) Ninguém não autorizado e que não for combater deve entrar no campo de duelo, obstruir os esgrimistas, dar sermões ou se colocar entre eles. Tal comportamento será castigado a golpes.

22) Acontece também que labregos e jornaleiros assobiam e gritam para os esgrimistas, como se fossem uns tolos. Tal comportamento será castigado pelo organizador, seja com prisão ou a golpes.

23) Há esgrimistas que não querem combater no torneio, exceto se é em troca dum prémio em dinheiro. Esta gente tende a berrar a nobres e burgueses, incitando-os a pagar um dinheiro polo qual deveriam lutar. No entanto, o torneio não foi estabelecido como meio de ganhar dinheiro, mas como um exercício para a mocidade. Qualquer esgrimista deve ser punido a partir de agora com uma multa por tal comportamento.

24) No entanto, é possível combater por um prémio em dinheiro, sempre que haja alguém entre o público com vontade de oferecê-lo livremente. Esse dinheiro deve ser entregue ao organizador para que posteriormente possa premiar o vencedor do duelo. O espectador que oferece o dinheiro pode escolher ele mesmo os dous esgrimistas que lutam polo prémio.

25) Esses dous combatentes não devem lançar-se um contra outro como plebeus, como se quisessem matar a outra pessoa no sítio, senão que devem agir segundo a arte própria do torneio de esgrima.

26) Também devem passar por todos os três assaltos e não terminar o duelo após o primeiro golpe quando o sangue aparecer, saindo o ganhador a correr polo dinheiro. O outro pode ter sucesso no segundo turno com um «acerto maior», pois o acerto maior é sempre mais válido do que o menor. Os combatentes devem passar por todos os três assaltos sem nenhum acordo secreto.

27) Quem combate polo prémio em dinheiro sob acordo secreto será punido com prisão e o prémio em dinheiro será confiscado pelo organizador.

28) Se um esgrimista está bêbado e o outro sóbrio, o bêbado não poderá esgrimir, pois a esgrima bêbada causa graves feridas.

29) Ninguém deve receber tratamento de mestre de esgrima e permissão para organizar um torneio, a menos que aprenda a esgrimir corretamente com cada uma das armas. Por esta razão, qualquer mestre de esgrima que organize um torneio deve resistir a um duelo até o primeiro sangue com cada uma das armas.

30) Se chover, o torneio será adiado para que o organizador não perca. O dinheiro já arrecadado deve ser usado para o bem comum.

31) Se o torneio for no domingo, deve começar na primeira hora da tarde5 e não no final da tarde, quando muitos esgrimistas já estão bêbados. Este «teatro» também pode tentar as pessoas a não irem à igreja, razão pela qual o torneio deve terminar antes das vésperas.6

32) Se um torneio for realizado numa casa, o proprietário receberá um Groschen por pessoa e deve garantir lugares adequados para sentar ou ficar em pé conforme a posição social de cada quem.

33) Também deve haver uma cerca construída ao redor do campo de duelo, para que ninguém não autorizado entre ali. Senhores e cavaleiros deveriam observar o torneio desde uma varanda.

34) Deve-se erguer uma estaca perto da cerca e uma pequena pá pendurada dela. Se alguém entrar na cerca sem autorização ou se comportar mal, levará três golpes dessa pá. Qualquer pessoa escolhida pelos anciãos ou pelo organizador do torneio para proceder ao castigo deve colaborar.

A edição em texto completo (checo) deste decreto pode ser encontrada em Jaroslav TUČEK: Pražští šermíři a mistři šermu [Esgrimistas e mestres de esgrima de Praga], Praha 1927, p. 79–94.

 

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Referências

Artigo original:

Causas para o duelo judicial, por Talhoffer

Hans Talhoffer (1410/15 — 1482+) foi, entre outras cousas, mestre da arte do combate para nobres que se viram na obriga de se bater em duelo.

«Aqui o Mestre Hans Talhoffer» — MS_Thott.290.2º_101vNão temos certeza do seu vínculo com a tradição de Liechtenauer. Há algumas lições semelhantes, mas muitas discordantes, e está ausente o que carateriza aos discípulos do Alto Mestre: a Zettel comentada. Por contra, Talhoffer escreveu a sua própria Zettel, com alguns versos semelhantes e muitos diferentes. Isto pudera ser indicativo de plágio ou, mais provavelmente, que ambos mestres beberam duma tradição comum.

Os tratados de Talhoffer são geralmente muito gráficos, com pouco texto, e têm o propósito explícito de serem referências técnicas para os seus estudantes, mas também é evidente que pretendem reforçar e assentar a necessidade do seu ofício. As partes textuais, porém, oferecem uma interessantíssima visão a respeito do duelo, e de como alguém que ganhava a vida com ele transmitia essa cultura ao seu estudantado.

Podes consultar mais fragmentos traduzidos da sua obra neste blogue, sob o tag Talhoffer.

«Velaqui as sete causas polas que um homem tem o dever de combater:

  • A primeira é o assassínio
  • A segunda é a traição
  • A terça é a heresia
  • A quarta é promover deslealdade contra o seu senhor
  • A quinta o sequestro
  • A sexta é o perjúrio
  • A sétima, abusar de mulher ou donzela

» E esses são os motivos pelos que um homem desafia outro a um duelo. Esse homem deve mostrar-se diante dum tribunal e apresentar o seu caso pela sua própria palavra. Deve este homem nomear a quem acusa pelo nome de batismo e apelido. Em chegado o acusado, deve o acusador repetir três vezes as acusações diante de três juízes — salvo se algum deles não aparece e não responde por si. Então deve o acusador mostrar que a sua necessidade é justa e correta. O acusado deve entender isto tudo tão bem como o acusador, e isto é importante pois vai em benefício da lei da terra. E apenas após ouvir as testemunhas deve ser emitido veredito.

» Então, quem fosse acusado deve mostrar-se diante dos três juízes para responder e defender. Deve mostrar-se livre de culpa e repetir que as acusações não são certas e que está disposto a combater por essa verdade, como permite e requer a lei da terra que pisa. Será então decretado o seu tempo para treinar, e este será de seis semanas e quatro dias. Passado esse período, deverão ambos combater, seguindo o costume e direito da terra. Ambos os contendentes devem livremente jurar retornar ante o tribunal e combater um com o outro, e assim cada um terá perto de seis semanas de treino em paz, e terão proibido romper essa paz até que chegue o momento que foi decretado pelo tribunal.

» […] É assim que dous homens vão ao duelo — salvo se tiverem menos de cinco graus de parentesco entre si: neste caso não poderão resolver através do duelo, e isto deve ser jurado por sete homens das ramas maternas ou paternas da família de qualquer um deles […]

» E se um homem desafiado for tolheito ou tivesse má vista, será justo por parte dos juízes decretar que a pessoa completa seja posta ao nível da outra, e este decreto deve ser feito assim ambos os homens jurem, para assim o homem tolheito ou com má vista ter oportunidade de vencer no duelo igual que o outro.

» E quando as seis semanas tenham passado e chegue o dia, então ambos devem apresentar-se diante dos juízes […] e nesse momento o acusador deve jurar que tem causa para combater contra o outro, e que considera o outro culpável. E assim os juízes marcarão uma arena e uma guarda para o duelo e um veredito, e darão conselhos seguindo os costumes da terra: que o homem errado será derrotado segundo a honra demanda, e que isto será prova de que o outro falou com verdade e justiça.

» Quando os combatentes se chegarem à arena, o juiz olhará para ambos e lembrará que está proibido tentar eludir o duelo nem por saúde nem por riqueza, e que ninguém poderá intervir na luta nem ajudar os combatentes […]

» E se qualquer combatente saísse da arena antes de o duelo chegar ao seu mortal fim, seja porque foi empurrado fora pelo seu oponente ou porque tenta fugir ou pelo motivo que seja, ou mesmo se admite que o outro homem tinha razão na causa do combate — então esse homem será julgado derrotado, e correspondentemente executado e matado. Porque foi conquistado por outro homem em combate, e foi feita justiça seguindo a lei e costume da terra».

— Hans Talhoffer, 1459, MS Thott.290.2º.
Extraído dos antetextos do livro Há Uma Única Arte da Espada.

 

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