Pangur Bán

No século IX, um monge irlandês anónimo escreveu, no mosteiro de Reichenau, um poema ao seu gato branco, Pangur Bán, companheiro nas longas e solitárias horas de trabalho sobre textos que, já na altura, eram antigos e de difícil compreensão.

Segue a transcrição do texto original e uma tradução livre da minha mão:

Messe ocus Pangur Bán,
cechtar nathar fria saindan
bíth a menmasam fri seilgg
mu menma céin im saincheirdd.

Caraimse fos ferr cach clú
oc mu lebran leir ingnu
ni foirmtech frimm Pangur Bán
caraid cesin a maccdán.

Orubiam scél cen scís
innar tegdais ar noendís
taithiunn dichrichide clius
ni fristarddam arnáthius.

Gnáth huaraib ar gressaib gal
glenaid luch inna línsam
os mé dufuit im lín chéin
dliged ndoraid cu ndronchéill.

Fuachaidsem fri frega fál
a rosc anglése comlán
fuachimm chein fri fegi fis
mu rosc reil cesu imdis.

Faelidsem cu ndene dul
hinglen luch inna gerchrub
hi tucu cheist ndoraid ndil
os me chene am faelid.

Cia beimmi amin nach ré,
ni derban cách a chele
maith la cechtar nár a dán,
subaigthius a óenurán.

He fesin as choimsid dáu
in muid dungní cach oenláu
du thabairt doraid du glé
for mu mud cein am messe.

Eu, e mais Pangur o Gato,
trabalhamos de modo grato:
ele, ávido, a caçar os ratos;
eu a escrever em livros raros.

Não há gesta de glória vaidosa
maior que a escrita em verso ou prosa —
mas Pangur Bán não tem inveja:
fica contente com caçar a presa.

E passamos horas, sós na casa
absortos cada um na nossa ânsia:
ele, certeiro, em encher o ventre;
eu, ausente, a nutrir a mente.

Às vezes sucede que desafia um rato
as poutas velozes do meu branco gato.
Nas palavras, nos livros, sucede o mesmo
quando não consigo traduzir um termo.

Descansa a olhada, de momento frustrada,
no oco da parede onde o rato escapara.
E da mesma forma passo a noite a bater
contra velhos textos o meu pouco saber.

Que alegria invade o coração do meu gato
quando a presa sai por fim do buraco!
E igual eu me sinto, orgulhoso e listo,
quando um termo difícil revela o sentido.

E desta forma trabalhamos ambos:
com paciência, em companhia, sem sobressaltos,
cada um envorcado por completo na Arte:
ele na sua, eu na minha parte.

A prática virou Pángur Bán mestre
na arte de caçar roedores silvestres.
Eu ganho, passeninho, maior sabedoria
a trabalhar nos meus textos, noite e dia.

Podes ouvir uma versão (moderna) do poema musicado por Pádraigín Ní Uallacháin, do seu álbume Songs of the Scribe. Há também uma pouca (mais não muita) de informação adicional no artigo correspondente da Wikipédia, incluída uma tradução para o inglês.

 

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Preparativos para um duelo, por Talhoffer (2)

Hans Talhoffer (1410/15 — 1482+) foi, entre outras cousas, mestre da arte do combate para nobres que se viram na obriga de se bater em duelo.

«Aqui o Mestre Hans Talhoffer» — MS_Thott.290.2º_101vNão temos certeza do seu vínculo com a tradição de Liechtenauer. Há algumas lições semelhantes, mas muitas discordantes, e está ausente o que carateriza aos discípulos do Alto Mestre: a Zettel comentada. Por contra, Talhoffer escreveu a sua própria Zettel, com alguns versos semelhantes e muitos diferentes. Isto pudera ser indicativo de plágio ou, mais provavelmente, que ambos mestres beberam duma tradição comum.

Os tratados de Talhoffer são geralmente muito gráficos, com pouco texto, e têm o propósito explícito de serem referências técnicas para os seus estudantes, mas também é evidente que pretendem reforçar e assentar a necessidade do seu ofício. As partes textuais, porém, oferecem uma interessantíssima visão a respeito do duelo, e de como alguém que ganhava a vida com ele transmitia essa cultura ao seu estudantado.

Podes consultar mais fragmentos traduzidos da sua obra neste blogue, sob o tag Talhoffer.

Para trunfares no combate:
move-te,1 não descanses2.
Luta se a luta é precisa
e ri se é preciso rir3.
Confia na Arte da Espada
que Talhoffer ensinava,
e não te levem a engano
lições de mestres estranhos.4 5

Eis o segredo da Arte Verdadeira segundo os mestres, em forma fácil de entender, e deve ser guardada com zelo, e é proveitosa, e fica aqui exposta em bom fundamento.6

Quando queiras combater pola vida7 com alguém, deves em primeiro lugar arranjar sítio e data. Depois, equipa-te com quanto material vaias necessitar, e deves fazer isto pessoalmente, e em secreto — não fies em ninguém o que vás fazer, ou quais são as tuas intenções, porque o mundo está cheio de falsidade —, e deves prover-te dumas boas luvas,8 espada e perponto, calças e qualquer outra cousa que pretendas usar. E observa bem que este equipamento seja confortável e adequado, e que atenda à tua preferência,  porque a espada não atende a outra razão que ela mesma, e quer ser livre.9

Quando chegues ao lugar do duelo10 e queiras começar, deixa que a outra parte diga e faça quanta cousa queira, e não afastes a tua vista dela,11 e concentra-te,12 e diga o que diga, não te deixes provocar, e combate com zelo13 pola própria vida, e não lhe permitas descanso, e segue e confia na Arte.14

Não temas os seus ataques e, se te combate a sério, lembra o Zucken para burlar-lhos.15

Hans Talhoffer, homem honrado,16 pode dar fé da verdade disto, porque muitas vezes se viu nesta mesma situação.

—Talhoffer, MS Thott.290.2º, S.XV,
em livre tradução de Diniz Cabreira.

 

 

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Conduta nas escolas de esgrima segundo Christoff Rösener

→ O poema «O Conto da Esgrima» («Bericht vom Fechten»), de 1579, narra longamente uma conversa entre o narrador e um estudante de esgrima que vai caminho de Frankfurt para tomar o exame de Mestre da Espada de mão dos Marxbrüder.

Ao longo do poema o estudante conta a história da Arte — presentada como criação de Hércules no monte Olimpo —, aperfeiçoada polo Império Romano e os povos germânicos e, em certa forma, domesticada através dos séculos para afastá-la das carniçarias do campo da batalha e virá-la uma atividade nobre e aceitável socialmente, até culminar nas Fechtschüle — os encontros lúdicos e competitivos burgueses do século XVI. Fala no processo da história dos Marxbrüder, e mais dos seus rivais os Federfechter, e dá uma mostra bem interessante da rivalidade que existia entre ambos (o narrador proclama, num ponto, que vai «dar cuteladas até fazer cair as penas» do esgrimista Federfechter, e depois «varrer o chão com ele»).

O Poema é longo e, além da história e dos conflitos entre grémios, lista também várias técnicas duma versão serôdia da tradição de Liechtenauer. Contra o final do poema descreve as normas de comportamento que se aguardam de quem estuda e pratica a Arte. Achei esta parte interessante por quanto adianta alguns pontos de segurança que ainda aplicamos hoje (não levar nenhum fecho nem peça de metal no equipamento defensivo, por exemplo) e destaca uma atitude de respeito na escola não muito diferente do Código de Conduta que usamos na Arte do Combate:

AS NORMAS DA ESCOLA
Fragmento do poema
O CONTO DA ESGRIMA
por Christoff Rösener, 1579;
em livre tradução de Diniz Cabreira, 2021.

A vergonha maior na esgrima
é estudar sem disciplina:
Deves treinar o que sabes
e ir às aulas com vontade.

Saúda estudantes e mestre
e, nos torneios da escola,
não convides estranha gente.
Devem passar a prova:
três assaltos contra o mestre.
E depois, que o torneio comece!

Sem metal nenhum na roupa,
nem adaga na cadeira,
com cabeça descoberta.

Não deixes cair a arma, segura nela!
Nem caias ti tampouco: sempre alerta!

E não andes a bater às toas.
Conduz-te com boas formas:
não deves fazer burlas.

Fica proibido nos treinos
atacar até fazer sangue
no momento do combate.

Se virem visitantes
deves mostrar respeito
e não fazer desprezo.
Por contra, um par de assaltos
combate polo loureiro.

Vem! Junta-te à dança logo!
Sente a admiração do povo
por mestres e estudantes!

Se as normas não aceitas
afasta-te da Fechtschule,
estudantes, e escola inteira!

Não merecemos pior companhia
da que estas lições ensinam:
que a Arte seja orgulho e honra!

E chego ao final, cumprido o dever
de explicar estas normas.

— Christoff Rösener,
Mestre da Espada, 1579.

 

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Regulamento de Esgrima da Cidade Velha de Praga, 1597

→ Esta é uma versão autorizada dum artigo de Ondřej Vodička titulado 1597, Fencers’ Ordinance of the Old Town of Prague, traduzido por Diniz Cabreira (2021). Entre colchetes [] vão anotações à tradução do texto original feitas por Ondřej, e com números e em notas ao pé clarificações e comentários pola minha parte.

No 28 de julho de 1597, o concelho da Cidade Velha de Praga promulgou o Regulamento dos Esgrimistas a fim de impor a disciplina nos torneios de esgrima (Fechtschule) e controlar os esgrimistas domésticos e errantes.

Realizar um torneio de esgrima na Cidade Velha tradicionalmente era responsabilidade e direito do grémio dos cuteleiros. No entanto, este costume provavelmente estava em declínio desde que o grémio dos Federfechter de Praga surgiu nos anos setenta do século XVI. Os membros desta irmandade combatiam principalmente com espada roupeira, e para ganhar o título de «mestre da espada longa» deviam combater contra um membro da famosa irmandade de São Marcos (Marxbrüder) com sé em Frankfurt, que recebera o monopólio imperial sobre a distribuição destes títulos.

O documento original não sobreviveu. No entanto, o texto foi copiado num dos livros administrativos do concelho da Cidade Velha. O livro foi chamado Kniha pořádkův [O Livro dos Regulamentos] e incorporou cópias de normas selecionadas datadas entre 1476 – 1715. O Livro dos Regulamentos foi infelizmente queimado durante o bombardeio de Praga em 8 de maio de 1945. O texto deste regulamento sobreviveu apenas como um apêndice da publicação Pražští šermíři a mistři šermu [Esgrimistas e mestres de esgrima de Praga] de 1927, da autoria dum esgrimista e historiador de esgrima Jaroslav Tuček (1882 – ca. 1940?).

Vista de Praga por Václav Hollar em 1636.
Original na Galeria Nacional Checa de Praga. Esta cópia da Wikimedia Commons.

Tradução seletiva

O concelho da Cidade Velha de Praga declara e decide que:

1) Existem preguiçosos vindo de outros lugares para Praga, que pretendem organizar torneios de esgrima e ficar ociosos, visitar pousadas e passear à noite. Isso causa muitos escândalos, brigas, feridas e assassinatos.

2) Organizar torneios de esgrima sempre esteve no poder do grémio dos cuteleiros para promover a bravura e uma esgrima viril.

3) O torneio de esgrima foi estabelecido para que os cuteleiros, que vivem uma vida honrada e humilde, possam melhorar as suas habilidades na esgrima.

4) Os esgrimistas mais velhos, eleitos para governar a sociedade de esgrima, devem ser burgueses ou habitantes de longa data da Cidade Velha de Praga e comportar-se com decência.

5) O público dum torneio de esgrima não deve perturbar os esgrimistas.

6) Os esgrimistas que organizam os torneios de esgrima, e em fazendo isso têm poucos rendimentos, devem receber uma quantia justa de dinheiro da taxa cobrada por participar no torneio, para estarem mais dispostos a organizá-lo.

7) Todo esgrimista, seja Federfechter ou Marxbruder, e especialmente os membros dos grémios, que não são preguiçosos, devem ser inscritos num registo especial.

8) Federfechter e Marxbrüder devem juntar-se para organizar um torneio de esgrima todos os domingos e dias feriados.

9) Quem quiser organizar um torneio de esgrima deve perguntar com antecedência aos cuteleiros mais velhos, para poderem acompanhar e endossá-lo perante o Concelho.

10) Atenção especial deve ser dada à reputação do organizador de um torneio de esgrima, para que não seja nem um preguiçoso, nem um causador de problemas, mas um artesão decente.

11) Se houver um desocupado querendo participar de um torneio de esgrima com o propósito apenas de se exibir [«agir como um pavão»] e ganhar dinheiro e viver disso, essa pessoa não deve  ser permitida de fazer parte do torneio.

12) Um torneio de esgrima requer as armas usuais de madeira, como Dussacks, bastões e alabardas, bem como as armas de aço, como espadas1 e roupeiras. Estas armas devem ser mantidas prontas em número suficiente polo grémio dos cuteleiros, com obriga de emprestá-las a quem organize um torneio de esgrima. Se uma arma for danificada ou quebrada durante o torneio, os cuteleiros farão uma nova.

13) Por esse motivo, qualquer pessoa que organizar um torneio de esgrima deve pagar ao grémio dos cuteleiros a taxa indicada de sessenta de Meissner groschen.2 No caso de quebra de uma espada ou roupeira durante o torneio, o organizador paga ao grémio mais trinta kreuzers por fazer uma nova espada e vinte por uma roupeira, porém não há tal pagamento se quebrar uma arma de madeira.

14) Geralmente as pessoas que atendem o torneio são boas e honestas, e até mesmo nobres. É estritamente proibido ao público entrar no meio dos duelos, pois, por ignorar esta regra, muitas pessoas foram feridas ou ficaram cegas. Se alguém infringir esta regra e tiver formação em esgrima, terá proibido participar em torneios por um tempo; se não souber esgrima, essa pessoa será levada perante o Concelho e punida por este.

15) «Há esgrimistas covardes a usarem luvas longas até o côvado, em contra das antigas tradições. Isto fica desde este momento proibido. Quem participar no torneio deve levar luvas a cobrir apenas a mão, para que ninguém descanse a sua esgrima em luvas longas até o côvado.3

16) Ninguém deve ter permissão para participar de um torneio a menos que tenha recebido instrução adequada em esgrima.

17) Quando os esgrimistas fecham a distância não devem se lançar uns contra os outros com raiva, mas devem combater «limpa e longamente» conforme a tradição, sem importar a arma que empunhem.

18) Mestres e estudantes devem agir com solenidade e respeito durante o torneio, sem fazer parvadas4 como sacudir a cabeça ou botar a língua fora.

19) Mestres e estudantes de esgrima devem ficar afastados durante o torneio, Marxbrüder de um lado e Federfechter do lado oposto, para que as pessoas os reconheçam facilmente. Não devem obstruir nem «ficar juntos como gansos» no campo de duelo e, assim, bloquear a visão.

20) Todo esgrimista é obrigado a iniciar o duelo conforme a tradição, ao contrário do labrego, que corre loucamente em busca de uma arma, agarra-a e quer bater com ela como um boi estúpido.

21) Ninguém não autorizado e que não for combater deve entrar no campo de duelo, obstruir os esgrimistas, dar sermões ou se colocar entre eles. Tal comportamento será castigado a golpes.

22) Acontece também que labregos e jornaleiros assobiam e gritam para os esgrimistas, como se fossem uns tolos. Tal comportamento será castigado pelo organizador, seja com prisão ou a golpes.

23) Há esgrimistas que não querem combater no torneio, exceto se é em troca dum prémio em dinheiro. Esta gente tende a berrar a nobres e burgueses, incitando-os a pagar um dinheiro polo qual deveriam lutar. No entanto, o torneio não foi estabelecido como meio de ganhar dinheiro, mas como um exercício para a mocidade. Qualquer esgrimista deve ser punido a partir de agora com uma multa por tal comportamento.

24) No entanto, é possível combater por um prémio em dinheiro, sempre que haja alguém entre o público com vontade de oferecê-lo livremente. Esse dinheiro deve ser entregue ao organizador para que posteriormente possa premiar o vencedor do duelo. O espectador que oferece o dinheiro pode escolher ele mesmo os dous esgrimistas que lutam polo prémio.

25) Esses dous combatentes não devem lançar-se um contra outro como plebeus, como se quisessem matar a outra pessoa no sítio, senão que devem agir segundo a arte própria do torneio de esgrima.

26) Também devem passar por todos os três assaltos e não terminar o duelo após o primeiro golpe quando o sangue aparecer, saindo o ganhador a correr polo dinheiro. O outro pode ter sucesso no segundo turno com um «acerto maior», pois o acerto maior é sempre mais válido do que o menor. Os combatentes devem passar por todos os três assaltos sem nenhum acordo secreto.

27) Quem combate polo prémio em dinheiro sob acordo secreto será punido com prisão e o prémio em dinheiro será confiscado pelo organizador.

28) Se um esgrimista está bêbado e o outro sóbrio, o bêbado não poderá esgrimir, pois a esgrima bêbada causa graves feridas.

29) Ninguém deve receber tratamento de mestre de esgrima e permissão para organizar um torneio, a menos que aprenda a esgrimir corretamente com cada uma das armas. Por esta razão, qualquer mestre de esgrima que organize um torneio deve resistir a um duelo até o primeiro sangue com cada uma das armas.

30) Se chover, o torneio será adiado para que o organizador não perca. O dinheiro já arrecadado deve ser usado para o bem comum.

31) Se o torneio for no domingo, deve começar na primeira hora da tarde5 e não no final da tarde, quando muitos esgrimistas já estão bêbados. Este «teatro» também pode tentar as pessoas a não irem à igreja, razão pela qual o torneio deve terminar antes das vésperas.6

32) Se um torneio for realizado numa casa, o proprietário receberá um Groschen por pessoa e deve garantir lugares adequados para sentar ou ficar em pé conforme a posição social de cada quem.

33) Também deve haver uma cerca construída ao redor do campo de duelo, para que ninguém não autorizado entre ali. Senhores e cavaleiros deveriam observar o torneio desde uma varanda.

34) Deve-se erguer uma estaca perto da cerca e uma pequena pá pendurada dela. Se alguém entrar na cerca sem autorização ou se comportar mal, levará três golpes dessa pá. Qualquer pessoa escolhida pelos anciãos ou pelo organizador do torneio para proceder ao castigo deve colaborar.

A edição em texto completo (checo) deste decreto pode ser encontrada em Jaroslav TUČEK: Pražští šermíři a mistři šermu [Esgrimistas e mestres de esgrima de Praga], Praha 1927, p. 79–94.

 

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Referências

Artigo original:

400 anos e nada muda

Em 1942, depois do ataque japonês sobre Pearl Harbour, os USA estão a livrar uma guerra no pacífico que com frequência envolve ações na floresta selvática e confrontos contra cutelos, machetes, baionetas e mesmo com espadas dos oficiais japoneses.1

Neste contexto, Frederick Ehrsam, C.E.2 escreveu um manual para a faca ou cutelo de campo LC-14-B. Este estava desenhado para o trabalho no mato, e vinha acompanhado de vários instrutivos para o seu aguçado e uso como ferramenta, mas também dum pequeno livrinho de 16 páginas titulado Fighting with U.S.A. Knife LC-14-B (The woodman’s pal).

O tipo de esgrima prescrita no texto, necessariamente superficial, tem uma clara inspiração na esgrima de sabre (como também a guarda do cutelo), adaptada. Porém, o mais interessante para nós são várias instruções de caráter geral dadas para soldados que, com probabilidade, tinham zero experiência em esgrima. De entre o conjunto destaca, na página 11:

«Feint and attack until you hit. If your attack should miss or be parried, do not stop; change the attack continuously from one point to another until successful, or until you are forced to stop.

» If any movements have missed or have been parried […keep attacking exposed openings]. The idea being that as long as you attack, the opponent must parry; if you stop attacking, he will take the initiative and force you on the defensive.»

«Executa fintas e ataques até atingires. Se o teu ataque falha ou é defendido, não te detenhas: continua o ataque mudando de um ponto para outro até teres sucesso, ou até que te vejas na obriga de parar.

» Se os teus movimentos falham ou são defendidos […continua atacando as aberturas expostas]. A ideia é que enquanto te mantiveres no ataque, a outra pessoa deve defender; se deténs o ataque, tomará a iniciativa e obrigará-te a a defender a ti.»

— Frederick Ehrsam, Fighting with U.S.A. Knife LC-14-B, 1942, p.11.
Tradução própria.

Vale comparar isto com os conselhos recolhidos no manuscrito GNM HS 3227a de ~1389 (que temos traduzido e publicado sob o título Há Uma Única Arte da Espada):

«M|Otus · das worte schone /
ist des fechtens eyn hort vnd krone /

 |der gancze mat~iaz / des fechtens / mit aller pertine~ciã / |Vnd der artikeln gar / des fundamentes / dy var / |Mit name~ sint genant / vnd werden dir hernoch bas bekant / |Wy deñe eyñ nur ficht / zo sey her mit den wol bericht / |Vnd sey stetz i~ motu / vnd nicht veyer wen her nit / |An hebt czu fechte~ / zo treibe her mit rechte / |Vm~er in vnd endlich
eyns noch dem andñ künlich / |In eyme rawsche stete / an vnderlos imediate / |Das iener nicht kome / czu slage des nympt deser frome~ / |Vnd iener schaden / |wen her nicht ungeslage~ / |Von desem kome~ mag / tut nur deser noch dem rat / |Vnd noch der leren / dy itczunt ist geschreben / |So sag ich vorwar / sich schützt iener nicht ane var / |Hastu vornome~ / czu slage mag her mit nichte komen /

¶| |Hie merke~ · das · freque~s motus · beslewst in im / begy~nis / mittel · vnd ende / alles fechtens / noch deser kunst vnd lere / |alzo das eyñ yn eyme rawsche / anhebu~ge / mittel / vnde endu~ge / an vnderlos vnd an hindernis synes wedervechters volbrenge / |vnd iene~ mit nichte lasse czu slage kome~ […]»

«Motus: esta verba formosa
é da Arte coração e coroa.

» Pois de facto é desta matéria e não doutra que trata a Arte do Combate. Todo o que esta palavra contém e os fundamentos que nela há serão logo nomeados e explicados.

» E quando fores lutar deves ter estes fundamentos em mente e permanecer em movimento, sem hesitar quando tiveres alguém diante. Deves despregar as tuas artes sem temor, com confiança e sem duvidar, num fluxo constante de ações, para não lhe dares oportunidade de atacar. E assim vás ferir a outra pessoa, que não vai poder atacar por estar ocupada na defesa. E por isto eu digo: «não há defesa sem perigo». Se entendes isto, não terá oportunidade de te ferir.

» Então, tem presente: Frequens Motus, movimento constante, está no início, meio e fim de toda briga, e assim diz esta Arte e estas lições. Deves passar pelo início, meio e fim do combate num único fluir de movimentos, sem te deteres e sem que ninguém te detenha, e sem lhe dares oportunidade de atacar.»

— Anónimo, GNMHS 3227a, ~1389 f.[16r-17v].
Transcrição por Dierk Hagdorn, na Wiktenauer.
Tradução própria.

Sempre achei os conselhos do 3227a surpreendentemente contemporâneos, semelhantes aos que daria um manual do nosso presente. Comparados com as instruções deste manual de combate de há quase um século — certamente com vontade de ser aplicadas — o porquê é evidente: Há Uma Única Arte da Espada.

 

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Na procura da esgrima medieval galega

Há uns dias que o camarada Aldán,1 que treina na Sala Viguesa de Esgrima Antiga, escrevia com uma pergunta muito interessante. A resposta e conversa a seguir deu para bastante proveito polo que, com o seu consentimento, passo a reproduzir cá a sua pergunta e a minha resposta, ligeiramente editada em benefício do artigo:

Levo tempo cunha dúbida detras da orella, xusto me acordei hoxe e queria pedirche a tua opinion:

Sempre me preguntei que tipoloxia de esgrima se practicaria de maneira xeral na Galiza dos s XII a XV. Preguntabame se aplicarian o recollido nos tratados I.33 e 3227a, ou se pola contra seguirian algunha outra tipoloxia.

Por que dou por sentado estas dúas tipoloxias? Por que Pedro de Soutomaior foi un dos primeiros (se non o primeiro) en introducir as armas de fogo na peninsula, e ao parecer debia de ser unha persoa que apostaba pola innovación, así que se coñecia a existencia destas armas e conseguiu traelas non me extrañaria que coñecera e trouxera estes estilos.

Posiblemente isto non teña ningun sentido nin relación causa efecto, tamén dicir que falo sen sustentarme en ningunha evidencia, son puras elucubracións.

Mais recentemente vin en Wiktenauer un novo mestre coñecido como Ibn Hudayl. Parece ser que este mestre escriviu en arabe un libro sobre a guerra onde fala de distinta armas no século XIV. Imaxino que aquí poderiamos atopar pistas sobre o estilo de esgrima da peninsula neses anos.

Ben, como ves non teño nin idea, e gustariame trasladarche a ti esta dubida por se tes algunha opinión o respecto, que tipoloxia, ou tipoloxias de esgrima crees que se desenvolveron en Galiza entre os seculos XII e XV?

Pois… é muito boa pergunta, e uma que eu também me tenho feito.

Até onde sei, de momento não temos documentação do tipo de esgrima tardo-medieval que se praticava nestas terras, polo que tudo tem que ser inferência e supostos prudentes. Seria ótimo se nalgum momento aparecesse, nalgum tombo da Catedral ou algures, um sistema de esgrima autóctone ou provas documentais da prática doutros importados…

Porquê não encontramos tratados galegos

O escritório de Aldán em plena operação de pesquisa — no primeiro plano, a nossa tradução do 3227a para o galego, e no fundo, o cartaz da Zettel que acompanha o livro. No computador, as postas de Fiore.

O certo é que os tratados de esgrima (que eram caros de fabricar, e portanto um objeto para gente rica) seguem o dinheiro. No final da idade média, isso é o eixo das cidades itálicas e a Hansa — quer dizer, justamente atravessando o Sacro Império de sul a norte. Quando, virando o S.XV, o poder económico desloca da centro-europa para o eixo leste-oeste íbero-itálico, aí é onde vão aparecer os novos tratados (e com eles, a Destreza). Depois, com o auge da França moderna, será esta a que tome o relevo, etc… Isto é uma simplificação, é claro, mas serve de grosso quadro para a nossa circunstância.

Outro requerimento importante para a existência de tratados (de qualquer matéria) é que exista um público que os valorize. As universidades (e antes delas as escolas catedralescas, etc) que foram nascendo no ultimo terço da idade média são uma mostra da (relativa) alfabetização da sociedade. Aos poucos vai existindo uma nobreza mais geralmente culta (não é certo que a nobreza medieval fosse profundamente bruta e inculta, como sabemos, mas semelha existir uma generalização, particularmente da cultura escrita, entre a nobreza a medida que avança o medievo — para mostra, ver quem eram os autores das nossas cantigas, ou quem manda traduzir a Crónica de Troia à nossa língua) e uma camada burguesa mais formada (que deve levar os seus livros de contas, os seus pleitos e contratos, etc). Esta é a gente que consume e demanda os livros de esgrima (entre outros), e que os mostra como objetos de ostentação social (no caso da burguesia, provavelmente para se apropriar dos atributos da nobreza, no processo de a substituir).

Somados estes dous fatores (que são apenas a superficialidade do assunto, olho) temos que o apogeu económico da Galiza medieval está por volta do S.XII, polo menos relativa aos povos que tinha ao redor (e com isso refiro-me à Europa ocidental inteira). Aí é onde deveríamos encontrar tratados de esgrima, mas até onde sabemos, ainda não começara a moda de os fazer. Não existiam ainda as universidades, não estava ainda (em termos gerais) suficientemente desenvolvidas as camadas meio-ricas da sociedade, e não existia um acumulação de capital suficiente para fazer que os livros de esgrima, que não são objectos de culto, justifiquem a sua existência.

Após o apogeu da Era Compostelá, a Galiza vai cair em vários séculos de guerras quase continuadas, com a nobreza galaica tentando recuperar a hegemonia (ou resistir o seu deslocamento cara Castela). O apogeu destas será a longa Guerra Petrista da final do S.XIV, e a agonia final prolonga-se nas Guerras Irmadinhas e a guerra em defesa de Joana «a Excelente Senhora». Após o fracasso da politica militar galega nestas, os próprios Reis Católicos procedem à famosa «Doma e Castração» que, a efeitos práticos, elimina essas camadas sociais que puderam, em séculos posteriores, ter produzido ou consumido tratadistica autóctone — iniciando, em suma, os Séculos Escuros, onde a nossa cultura em essência desaparece até o S.XIX.

Isto coloca, do meu ponto de vista, a Galiza dos S.XIV – XV (o início da tratadistica de esgrima que conhecemos) numa situação semelhante à da França na altura. O Reino dos Francos era o reino europeu por excelência, flor da cavalaria, etc. Por quê não aparecem os primeiros tratados de esgrima nele?2 Em parte porque não existe uma distribuição de capital entre as camadas altas da população semelhante à do Sacro Império (mais descentralizado, com muitos nobres e burgueses, e com esse eixo comercial norte-sul). Em parte também porque a guerra constante distrai a atenção da gente para matérias mais urgentes: estavam ocupados matando-se como para andar a ler em livros duma esgrima que, afim de contas, era com quase total certeza 99% lazer.

A esgrima que de certo sim era praticada

Então… essa é uma possível explicação de por quê não há (ainda que ogalhá algum dia encontremos algo) material autóctone. Mas, não se estudava esgrima?

Alfredo Erias – desenho de cavaleiro do S.XIV da Igreja de São Francisco de Ourense

Com certeza, sim. Havia espadas, comparáveis às do resto do continente, gente de armas, e gente a combater com elas. Havia, portanto, qualquer tipo de formação ao respeito. A questão é como era essa formação, de onde vinha, quem a ministrava. Para responder a isto seria necessário fazer um estudo a fundo de como estava organizada a sociedade galega na altura, e particularmente as cidades — matéria da que eu conheço pouco (uma de tantas cousas pendentes de aprender).

É possível que existisse um sistema de esgrima autóctone, mas não sabemos. Talvez se praticassem muitos estilos diferentes (quase com total certeza essa era a situação em quase qualquer lugar da Europa na altura). É possível que parte desses estilos fossem importados.

Como ti bem apontas, é importante incidir para a o público geral no fato de a Galiza não ser, na altura, «periferia», nem um lugar atrasado nem longe das vias de comunicação ou dos centros de poder. A Galiza estava em contato direto com a corte inglesa (e, suspeito, com a francesa também), e sempre teve contato com Roma e a península itálica. E, sobra dizer, o contato com Portugal era tal que basicamente era a mesma cousa. Por isso podemos ver arneses como os dos Andrade (especialmente o d’«o Mau»), de altíssima qualidade.

Capa do álbum «Cavaleiros» de Alfredo Erias — no primeiro plano vemos uma archa, espada duma e de duas mãos, adaga de rondel. Atenção também à qualidade dos arneses

Sabemos que o Conde Andeiro estava a cavalo entre Galiza, Portugal e Inglaterra. Era político, e nessa época cabe supor-lhe sequer um pouco de interesse no assunto marcial. Há outros muitos exemplos, claro. A questão é: puderem estas gentes ter importado algum dos estilos que temos documentados? Não é improvável, mas novamente nada temos documentado.

É possível, por exemplo, que dada a ligação inglesa, nalgum momento tivéssemos algum contato com o tipo de esgrima recolhida no Man yt wol, o Cotton Titus e o Ledall. Há quem quer fazer isto essencialmente idêntico à KdF, mas eu tenho sérias dúvidas ao respeito.3

Também pudera ser que algum nobre, burguês, viajeiro, peregrino ou mercenário trouxesse consigo a Kunst do Império. Ou a esgrima do Grupo de Nuremberga. Ou a do Gladiatoria, ou a de Fiore. Por que não? Se calhar a burguesia nascente das Revoltas Irmadinhas estava a estudar alguma destas escolas, ou uma mistura ou bastardização das mesmas.

Alfredo Erias – desenhos arqueológicos de sepulcros de cavaleiros da Igreja de São Francisco de Lugo, S.XV – atenção à inegável espada de duas mãos

Outro tema é o das fontes árabes. Como bem dizes, há material. Não sei como de aplicável seria para nós: dos povos da península (talvez excetuado o basco), o galego era o menos islamizado, muito virado para o atlantismo e os contatos continentais. Para além disto, estamos a falar já duma época de declínio na hegemonia cultural dos estados islâmicos na península. Tenho dúvidas a respeito do que pudesse chegar à prática da esgrima da Galiza, mas quem sabe… o estudo das fontes árabes (para o que possa trazer para nós ou as HEMA em geral) está por fazer, e é certamente muito necessário. Qualquer cousa tem que existir aí.

Em resumo: se a pergunta é «pudera ser que alguém praticasse a tradição X na Galiza», a minha resposta é «é certamente possível». Estávamos bem conectados, e a troca cultural era importante. Se a pergunta fosse «existiu uma tradição de esgrima autôtone», já duvido mais. É possível — até certo ponto, qualquer pessoa a pegar numa espada e improvisar técnicas de combate mais ou menos elaboradas estava a criar o seu próprio sistema, e portanto por definição era um sistema naturalmente galego. Mas isso sucedia em toda parte, em maior ou menor grau. Certamente também sucedeu na Galiza, mas o debate não é esse. Quando falamos de HEMA estamos a falar dos sistemas dos que ficou registo documental. Nesse sentido há que dizer, tristemente, que não me consta termos nada.

Até agora, é claro.

 

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A violência na sociedade tardomedieval:
ilegal, social e legal

→ Este artigo faz parte dos ensaios contextualizantes incluídos no livro Há Uma Única Arte da Espada, que é um estudo e tradução livre do manuscrito GNM HS 3227a: um dos textos mais relevantes no estudo da Kunst des Fechtens.
Podes comprar o livro em papel no website da AGEA Editora.

Alguns números:

Oxford ou a Florença do S.XIV apresentam uma estatística de 110 homicídios por cada 100,000 habitantes. São números elevados: a cifra baixa a 20 – 40 por 100,000 habitantes de média no resto do continente. Mas ainda isto é um pico: no S. XIII as cifras eram consideravelmente inferiores e com posterioridade ao 1500 também vamos ver um descenso progressivo até meados do S. XX (Irlanda, por exemplo, chega aos 0.25 homicídios por 100.000 em 1950).

Um dado a termos presente é a realidade médica: estima-se que o 50% das vítimas de homicídio do S. XIX teriam sobrevivido se tivessem acesso à nossa ciência médica. Longe de suavizar a intenção das tentativas de assassínio, devemos ter presente que a população na altura não era ignorante dos riscos: hoje estaríamos dispostos a receber e produzir feridas que no passado podiam ser com muita probabilidade causa de infeção e morte. A atitude, portanto, devia ser bem mais prudente na auto-defesa, e em oposição, matar alguém resultava mais simples: uma ferida podia ser suficiente para garantir uma morte dolorosa e dilatada.

— Dados tirados de Making Sense Of Violence?
Reflections On The History Of Interpersonal Violence In Europe
,
por Richard Mc Mahon, Joachim Eibach Et Randolph Roth.

Que a violência é um meio histórico de resolução de conflitos é uma evidência. A aproximação crítica a esta realidade é considerar que «a guerra é o fracasso último da diplomacia». A cínica (ou realista) é que «a guerra é a continuação da política com outros meios». Seja como for, a violência física (por não falar das poderosíssimas violências sistémicas, simbólicas ou económicas que dão forma às nossas vidas) é uma realidade presente hoje em dia e ainda mais no passado.

Podemos excluir desta análise a guerra já citada. Esta é um fenómeno organizado de grande escala, onde o relevante é o grupo e não, como no caso que nós estamos a estudar, o indivíduo. Embora seja errado pensar numa sociedade ou um contexto «civil» na Idade Média, já que esse é um conceito produto do liberalismo politico, com certeza podemos dividir a violência interpessoal que fica fora do âmbito militar em: auto-defesa (e o seu reverso o crime), violência social e violência legal. Todos eles são aspetos tratados pela Kunst des Fechtens, embora em diferente grau, como vamos ver.

A violência ilegal e a sua resposta

O crime e a auto-defesa existem juntos. Em geral as nossas fontes não assumem a vontade de cometer um delito por parte de quem lê — mas sim da necessidade de nos defender dele. O tratamento disto é, em geral, secundário (a maior parte do corpus assume um único oponente com armas iguais às nossas em combate singular) mas Talhoffer, por exemplo, mostra imagens para a defesa duma pessoa contra vários oponentes. Este mesmo 3227a fala de como lutar contra «quatro ou seis pessoas» (mais bem fala da necessidade de fugir delas… mas disto é possível deduzir que quem escreveu achava que devíamos poder vencer até três oponentes à vez).

É importante destacar que falamos duma época em que a violência não é ainda monopólio do estado. Não existem exércitos regulares (vão aparecer como consequência da Guerra dos Cem Anos) nem polícias como hoje as entendemos, e as «guardas» de muitas cidades são turmas rotativas de milícias formadas pelos próprios cidadãos. De muita gente aguarda-se (exige-se) que tenha armas na casa, suficientes para formar um contingente com que defender a cidade ou o território. Neste contexto, para a resolução de muitos conflitos no nível do crime e da auto-defesa a pro-atividade da população é considerável.

A violência socialmente aceitável

Vamos considerar «violência aceitável» na sociedade aquela que não tem como consequência a morte, já que esta última costumava promover a situação à categoria de delito. Inclui as disputas ocasionais (brigas de taverna, lutas entre vizinhos, etc) bem como os duelos «de honra», muito frequentemente não mortais, e outras dinâmicas de dominância social semelhantes. Todas estas violências podem, enquanto não tenham como consequência a morte ou dano grave e permanente, ser consideradas pelo resto da sociedade parte da «esfera privada» em determinados momentos históricos, e assim ignoradas mesmo quando tecnicamente puderam ser ilegais.

Não pode ficar sem menção cá uma das mais trágicas exceções a esta distinção: para a violência machista o tabu da morte nem sequer era assim tão forte — não em poucos casos o assassínio duma mulher pelo seu homem, mesmo sendo do conhecimento público, era ignorado de forma deliberada: a religião e a propriedade privada conspiravam em contra.

Cumpre também ter presente que estamos a considerar violência «entre iguais» socialmente falando. Um plebeu a agredir um membro da nobreza vai ter um tratamento diferente do que a situação inversa. Esta assimetria na aplicação da justiça é um facto tão atual como a realidade da violência — é por isso que os membros da casa real espanhola não são tratados da mesma forma pelo sistema judiciário que a oposição política.

Mas dentro dos parâmetros indicados, esta violência socialmente aceitável tem as suas próprias regras, das que a mais forte seria o «não matarás» já exposto. Estas normas encontram por vezes codificação legal, mas são em geral não escritas. Trata-se de situações alegais ou mesmo ilegais para as que a sociedade mostra tolerância — é um fenómeno a suceder em toda época. Assim, há apenas umas décadas não era infrequente os nossos vizinhos resolverem disputas através do varapau. O que na nossa geração resultaria numa denúncia na polícia era aceite na altura, considerando o envolvimento de autoridades superiores um mal maior. De forma semelhante, os duelos pós renascentistas estiveram geralmente proibidos na maior parte da Europa, mas não por isso eram menos aceites. O propósito dos mesmos era estabelecer o ascendente da palavra duma pessoa sobre outra, e enquanto não produzissem mortos, com frequência a justiça mirava para outro lado.

A cutelada seria legítima auto-defesa; a estocada, intento de assassínio

E estas normas podem virar por vezes muito específicas. Por acaso, no Sacro Império do S. XVI não era costume utilizar estocadas. Uma cutelada numa briga pudera ser entendida como uma forma legítima de auto-defesa, mas uma estocada facilmente seria interpretada como um intento de assassínio deliberado. A origem desta consideração é provavelmente médica — uma estocada é mais difícil de limpar (e em consequência, mais suscetível às infeções) que uma cutelada, e pode mais facilmente ferir órgãos internos que não é fácil curar com a tecnologia médica da época. Mas há adicionalmente uma consideração técnica: a cutelada é boa para deter ataques, é fácil de dar e fácil de atingir no alvo. Também tem maior «poder de parada», quanto é mais fácil que incapacite à oposição ao cortar tendões, ligamentos ou músculos, ou simplesmente pelo choque da ferida produzida. Tem um caráter mais instintivo, menos deliberado. A estocada, por contra, requer uma execução mais precisa, e portanto mais intenção por trás dela.

Porém, a estocada é considerada na Kunst des Fechtens o principal objetivo: «…a ponta é centro, coração e meio da própria espada». Devemos ter isto presente e analisar, em consequência, que quando o texto recomenda o uso da ponta está a assumir um combate «a sério», onde a nossa vontade será acabar com a outra pessoa. O contexto em que se vai dar isto nem sequer é a auto-defesa (pudéramos ter que responder pela morte de quem nos atacou, dependendo das amizades que tenham e o que delas reclamem), mas uma figura legal muito específica que já citamos com anterioridade: o duelo judicial.

Violência legal: o duelo judicial

Para Spierenburg, o duelo representa «uma inovação na prática da violência» na medida em que «a demora entre o desafio e o combate promove a contenção emocional. Trata-se dum passo além da violência impulsiva, na direção da violência planejada».

A origem deste duelo judicial está no direito consuetudinário dos povos germânicos, que foi estendido por estes através da Europa durante a época das migrações e formou a base, por vezes hibridado com o direito romano e outros, para o sistema legal de muitas terras. Ficou melhor recolhido nos códigos legais do Império Franco e do Sacro Império Romano desde o S. IX, e tem paralelismos na tradição do Holmgang escandinava. Foi perseguido pela Igreja Católica desde muito cedo, possivelmente porque o procedimento envolve dalguma forma o apelo à intervenção divina para separar a quem combate em justiça de quem mente, mas perdurou durante perto de 700 anos. Os últimos duelos judiciais documentados são do S.XVI, em que foram abolidos pelo imperador Maximiliano.

A nível de anedota: no Reino Unido, como consequência do seu amor pelo direito consuetudinário, o duelo judicial foi tecnicamente uma opção legal até 1818, em que foi definitivamente abolido. Os Estados Unidos da América, herdeiros desse mesmo marco legal do que se independizaram em 1776, nunca aboliram formalmente este mecanismo, pelo que — embora seja sistematicamente rechaçado pelos tribunais — há argumentação legal para defender que continua lá em vigor.

O recurso ao duelo judicial reservava-se para delitos graves em ausência de testemunhas

Este duelo judicial era em princípio uma opção à que podia recorrer a nobreza, os cidadãos livres dalgumas cidades (ver por exemplo a legislação de Gelnhausen, que decreta que os habitantes do burgo não podem ser obrigados a contender contra gentes de fora, mas sim podem eles desafiar a duelos quem não pertença à cidade) e, na mínima em certas ocasiões, mesmo os servos. Não era um direito automático: se a parte acusada fora descoberta «no ato», ou se existirem testemunhas ou provas suficientes, o curso da acusação seguiria um juízo normal. O recurso ao duelo judicial reservava-se para delitos graves em ausência de testemunhas.

Mas para falarmos do desenvolvimento, procedimento e consequências do duelo judicial, que melhor que citarmos cá um trecho de Hans Talhoffer, que foi (provavelmente) treinador profissional de duelistas para esta eventualidade (a formatação e os negritos são meus):

VELAQUI AS SETE CAUSAS
pelas que um homem tem o dever de combater

  • A primeira é o assassínio
  • A segunda é a traição
  • A terça é a heresia
  • A quarta é promover deslealdade contra o seu senhor
  • A quinta o sequestro
  • A sexta é o perjúrio
  • A sétima, abusar de mulher ou donzela

E esses são os motivos pelos que um homem desafia outro a um duelo. Esse homem deve mostrar-se diante dum tribunal e apresentar o seu caso pela sua própria palavra. Deve este homem nomear a quem acusa pelo nome de batismo e apelido. Em chegado o acusado, deve o acusador repetir três vezes as acusações diante de três juízes — salvo se algum deles não aparece e não responde por si. Então deve o acusador mostrar que a sua necessidade é justa e correta. O acusado deve entender isto tudo tão bem como o acusador, e isto é importante pois vai em benefício da lei da terra. E apenas após ouvir as testemunhas deve ser emitido veredito.

Então, quem fosse acusado deve mostrar-se diante dos três juízes para responder e defender. Deve mostrar-se livre de culpa e repetir que as acusações não são certas e que está disposto a combater por essa verdade, como permite e requer a lei da terra que pisa. Será então decretado o seu tempo para treinar, e este será de seis semanas e quatro dias. Passado esse período, deverão ambos combater, seguindo o costume e direito da terra. Ambos os contendentes devem livremente jurar retornar ante o tribunal e combater um com o outro, e assim cada um terá perto de seis semanas de treino em paz, e terão proibido romper essa paz até que chegue o momento que foi decretado pelo tribunal.

[…] É assim que dous homens vão ao duelo — salvo se tiverem menos de cinco graus de parentesco entre si: neste caso não poderão resolver através do duelo, e isto deve ser jurado por sete homens das ramas maternas ou paternas da família de qualquer um deles […]

E se um homem desafiado for tolheito ou tivesse má vista, será justo por parte dos juízes decretar que a pessoa completa seja posta ao nível da outra, e este decreto deve ser feito assim ambos os homens jurem, para assim o homem tolheito ou com má vista ter oportunidade de vencer no duelo igual que o outro.

E quando as seis semanas tenham passado e chegue o dia, então ambos devem apresentar-se diante dos juízes […] e nesse momento o acusador deve jurar que tem causa para combater contra o outro, e que considera o outro culpável. E assim os juízes marcarão uma arena e uma guarda para o duelo e um veredito, e darão conselhos seguindo os costumes da terra: que o homem errado será derrotado segundo a honra demanda, e que isto será prova de que o outro falou com verdade e justiça.

Quando os combatentes se chegarem à arena, o juiz olhará para ambos e lembrará que está proibido tentar eludir o duelo nem por saúde nem por riqueza, e que ninguém poderá intervir na luta nem ajudar os combatentes […]

E se qualquer combatente saísse da arena antes de o duelo chegar ao seu mortal fim, seja porque foi empurrado fora pelo seu oponente ou porque tenta fugir ou pelo motivo que seja, ou mesmo se admite que o outro homem tinha razão na causa do combate — então esse homem será julgado derrotado, e correspondentemente executado e matado. Porque foi conquistado por outro homem em combate, e foi feita justiça seguindo a lei e costume da terra.

— Hans Talhoffer,
MS Thott.290.2º, 1459

Adenda

Permito-me acrescentar cá umas palavras que no artigo publicado no livro ficaram fora, por questão de espaço. Se bem são conclusões ao meu ver claras do lido acima, vale a pena incidir nelas.

Pouco é necessário acrescentar ao já mostrado. Repare-se apenas nos seguintes aspetos do protocolo que Talhoffer descreve:

  • Um marco de violência extremamente formalizado
  • Com margem de tempo para a reflexão, preparação e treino
  • Com múltiplas oportunidades para qualquer das partes darem um passo atrás
  • Com um resultado inapelável: a morte de, na mínima, um dos dous combatentes.

Este ultimo ponto deve ser tido presente no contexto dos anteriores, compreendido e analisado. É certo que existem outras regulamentações para duelos, anteriores e especialmente posteriores, onde a morte não é inevitável, e a satisfação do primeiro sangue é suficiente. Este tipo de mecanismos têm mais a ver com o duelo de honra, do que não falamos neste apartado por quanto cai no anterior — a violência socialmente aceitável, mesmo sendo ilegal. No autêntico duelo judiciário a honra não é um fator relevante: o duelo em si é um mecanismo de pesquisa da verdade.

Do meu ponto de vista, a necessidade da morte em duelo tem como propósito desincentivar a participação no mesmo. A certeza duma morte quase segura (mesmo, repare-se, para a parte vitoriosa, que bem pode ser igualmente ferida de forma mortal) pretende que as pessoas envolvidas resolvam a disputa por qualquer outro médio possível, antes de recorrer a este, talvez polo definitivo das suas consequências e por ser, realmente, aquele «fracasso da diplomacia» que no início do artigo negávamos.

 

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