Preparativos para um duelo, por Talhoffer (2)

Hans Talhoffer (1410/15 — 1482+) foi, entre outras cousas, mestre da arte do combate para nobres que se viram na obriga de se bater em duelo.

«Aqui o Mestre Hans Talhoffer» — MS_Thott.290.2º_101vNão temos certeza do seu vínculo com a tradição de Liechtenauer. Há algumas lições semelhantes, mas muitas discordantes, e está ausente o que carateriza aos discípulos do Alto Mestre: a Zettel comentada. Por contra, Talhoffer escreveu a sua própria Zettel, com alguns versos semelhantes e muitos diferentes. Isto pudera ser indicativo de plágio ou, mais provavelmente, que ambos mestres beberam duma tradição comum.

Os tratados de Talhoffer são geralmente muito gráficos, com pouco texto, e têm o propósito explícito de serem referências técnicas para os seus estudantes, mas também é evidente que pretendem reforçar e assentar a necessidade do seu ofício. As partes textuais, porém, oferecem uma interessantíssima visão a respeito do duelo, e de como alguém que ganhava a vida com ele transmitia essa cultura ao seu estudantado.

Podes consultar mais fragmentos traduzidos da sua obra neste blogue, sob o tag Talhoffer.

Para trunfares no combate:
move-te,1 não descanses2.
Luta se a luta é precisa
e ri se é preciso rir3.
Confia na Arte da Espada
que Talhoffer ensinava,
e não te levem a engano
lições de mestres estranhos.4 5

Eis o segredo da Arte Verdadeira segundo os mestres, em forma fácil de entender, e deve ser guardada com zelo, e é proveitosa, e fica aqui exposta em bom fundamento.6

Quando queiras combater pola vida7 com alguém, deves em primeiro lugar arranjar sítio e data. Depois, equipa-te com quanto material vaias necessitar, e deves fazer isto pessoalmente, e em secreto — não fies em ninguém o que vás fazer, ou quais são as tuas intenções, porque o mundo está cheio de falsidade —, e deves prover-te dumas boas luvas,8 espada e perponto, calças e qualquer outra cousa que pretendas usar. E observa bem que este equipamento seja confortável e adequado, e que atenda à tua preferência,  porque a espada não atende a outra razão que ela mesma, e quer ser livre.9

Quando chegues ao lugar do duelo10 e queiras começar, deixa que a outra parte diga e faça quanta cousa queira, e não afastes a tua vista dela,11 e concentra-te,12 e diga o que diga, não te deixes provocar, e combate com zelo13 pola própria vida, e não lhe permitas descanso, e segue e confia na Arte.14

Não temas os seus ataques e, se te combate a sério, lembra o Zucken para burlar-lhos.15

Hans Talhoffer, homem honrado,16 pode dar fé da verdade disto, porque muitas vezes se viu nesta mesma situação.

—Talhoffer, MS Thott.290.2º, S.XV,
em livre tradução de Diniz Cabreira.

 

 

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Notas

  1. No original: bïß frisch, literalmente «tem frescura».
  2. No original: verhalt nit lang die stück, «não mantenhas as técnicas muito tempo». O conselho é semelhante ao frequens motus do 3227a.
  3. Estes versos quase decalcados de Non son fada, de Sés. O original diz: Darzuo hypschlich lachen|und die ernstlichen machen, ou «deves ademais rir com beleza | e agir com seriedade». Parece ser uma exortação a saber comportar-se em cada momento segundo a circunstância demanda, e os versos de Maria Xosé Silvar expressaram isso melhor do que eu poderia.
  4. Onde com «estranhos» quero dizer «alheios», outros mestres distintos de Talhoffer — ou de quem emsina as lições de Talhoffer.
  5. No original o ultimo destes quatro versos acaba a dizer que não confies nas lições doutra gente so rint dir daz blut nit uber die ougen, ou seja: «para não veres o sangue escorregar diante dos olhos». Muito gráfico.
  6. Este parágrafo é muito confuso no original: Die Schloss der rechten kunst nach dem also die meister die abgetailt hand von genähe wegen das auch billich zu behaltent ist wenn diß ist der recht grunde. Uma tradução direta nem sequer faz sentido gramatical, e as escolhas de outros tradutores tampouco são muito coerentes. A interpretação que apresento descansa na reiteração de Talhoffer em muitas partes dos seus textos acerca de manter a arte oculta.
  7. No original: wenn du in ernst mit ainem fechten. Ernstfechten é o combate «a sério», como oposto ao combate de treino ou por lazer. Quer dizer, o combate com vontade de ferir ou matar, não amistoso.
  8. No original: hentschuch nach deim vortail mit, literalmente: «umas luvas com as que te avantajar».
  9. Esta ultima frase resulta muito confusa. O original diz und merck aber wie du mit im |abredist, dann darby wirt eß beliben». Uma interpretação alternativa (em linha com o parágrafo anterior) pode ser «e toma posse deste equipamento e guarda-o perto de ti». O trecho mais evocador é o final onde fala, em forma poética, da «espada que não tem lei, senão ela mesma, e quer ser livre»: daz schwert |hat sunst kain recht, dann daz es aigner und fryer will ist.
  10. No original: wenn du in den schrancken kumpst, «quando chegas às barreiras». Note-se o mesmo schrancken que na Schranckhut.
  11. No original: und sich |nit hindersich, «não olhes para trás», mas polo contexto semelha claro que se refere a manter a olhada na oponente.
  12. Original: und hab den ernst im sinn, mas aqui Ernst refere-se a agir com seriedade, quer dizer concentração, foco.
  13. Original: und ficht ernstlich, novamente Ernstfechten, mas a tradução natural é divergente.
  14. und treu und folg der kunst. Refere-se a aplicar do aprendido.
  15. No original, «para negar-lhos com alegria» ou «jovialmente».
  16. No original: Hanß talhofer der guot man. É uma forma habitual para estabelecer a credibilidade ou respeitabilidade duma pessoa citada. Uso o nosso equivalente «homem honrado» que referencia Thomas Luiz no final das Lições da Espada Preta.