Com o galho da publicação do livro Há Uma Única Arte da Espada surgiu no Facebook um comentário, muito razoável, de Aleksander Yacovenco. A resposta é um bocado extensa, dá para reflexionar em vários pontos, e acho que é útil recolhe-la cá. Eis o comentário e, de seguido, a resposta:
Se me permite a crítica, você não acha que “Há Uma Única Arte da Espada” parece um nome um pouco arrogante? Mesmo na Europa existiam diversas variantes da esgrima. Comparando apenas as escolas de esgrima européias mais comuns no contexto contemporâneo de HEMA, acredito eu, Liechtenauer e Fiore, podemos ver que há diferenças marcantes. Isso sem comparar com artes marciais de países não europeus, porque aí teríamos uma infinidade de artes marciais diferentes, cada uma no seu contexto e merecendo o devido respeito. Eu acredito que não foi com essa ideia que você escreveu o livro, só queria fazer essa observação e procurar esclarecimento sobre o porquê da escolha do título
É arrogante, sim. 🙂
O nome está tirado do próprio manuscrito (que não traz título). No parágrafo inicial, diz:
Acima de tudo deves saber e compreender que há uma única Arte da Espada e que esta arte foi concebida e pensada centenas de anos atrás. Esta arte é alicerce e coração da Arte do Combate, que foi plenamente entendida e conhecida pelo Mestre Liechtenauer. Mas ele não inventou ou criou o que é descrito aqui, senão que viajou e procurou por muitas terras, pois queria aprender e experimentar a Arte.
O que esse trecho significa está aberto a interpretação, logicamente. Mas eu considero que pretende afirmar os seguintes pontos:
A Arte do Combate é muito antiga
Liechtenauer dominou totalmente esta Arte
Liechtenauer reuniu ou compilou a Arte (na Zedel, podemos inferir)
A Arte da Espada é a base da Arte do Combate
A Arte da Espada é, também, simples, reduzível para conceitos gerais ou mesmo universais (isto é: para a Arte do Combate)
A Arte da Espada é em consequência a forma de se iniciar num sistema integral, universal, para lutar com qualquer espada ou até qualquer arma.
Os pontos 1 – 3 são basicamente glorificação do texto que vai ser exposto de seguido, e apelo a uma autoridade remota e inatacável pela via da antiguidade. Isto é um recurso muito comum na escolástica medieval (e ainda hoje).
O ponto 4 é, de facto, discutido em vários lugares do texto: é dito que a Arte da Espada desce da Arte do Messer, e depois ainda que ambas e o Combate inteiro descansa no Ringen. Isto é, com certeza, um novo apelo à antiguidade e precedência para legitimar esses trechos do texto.
Mas também há, como é habitual, um fundo de verdade: a Arte da Espada de duas mãos presentada no 3227a tem claros vínculos com o uso da espada de uma mão. E a luta corpo a corpo é a base mecânica da que nascem muitos outros tipos de luta. Muitos combates acabam em luta corpo-a-corpo. E também por ser a luta corpo-a-corpo muito distante (nos aspectos específicos da aplicação) da espada de duas mãos, comparando ambas os princípios comuns subjacentes (Schwach/Stark, Weich/Hart, Vor/Nach, Indes e Fühlen, Blößen, etc) destacam com clareza.
Isto é, fundamentalmente, o recolhido nos pontos 5 e 6. A técnica específica da arma requer adaptação quanto mais diferente seja a arma (da espada de duas mãos para uma mão há pouca mudança comparado com a lança curta, e maior se a lança é longa e estamos a cavalo, e ainda mais na luta corpo-a-corpo). Mas os princípios comuns a todas formam o arco abrangente que seria a Arte do Combate.
Esta abstracção, este Arte do Combate generalizado, é aplicável a qualquer escola e a qualquer arma. Transcende as particularidades dum mestre ou outro, e duma arma para outra. Da mesma forma na actualidade podemos aplicar a teoria dos «tempos» da esgrima contemporânea, ou compreender a verdade por trás dos «True Times» de George Silver, ou aceitar a descomposição geométrica da Verdadeira Destreza, ou comparar os pares de Schwach/Stark e Weich/Hart com outras muitas artes marciais.
Seja como for, acho que é por isto que era dada tanta importância na tradição de Liechtenauer ao aprendizado da espada de duas mãos: através dela aprendemos aspectos teóricos comuns, e mesmo técnica aplicável, para as demais armas.1
Então — sim, a afirmação pode ser vista como arrogante, ainda que também pode ser interpretada dum ponto de vista mais filosófico.
Vale dizer, em favor da verdade, que o anónimo autor do manuscrito dedica bastante texto a falar mal da esgrima «ruim e vulgar» que fazem outros mestres que não seguem a escola de Liechtenauer. Neste sentido nem se distingue da Verdadeira Destreza, nem de George Silver, nem do I.33, nem do próprio Fiore, por citar apenas alguns exemplos.
Em todo caso, a frase deve ser entendida no contexto histórico e cultural adequado, onde o autor está apenas a utilizar a retórica socialmente aceite.
O que não quer dizer que eu não concorde em certa medida com ele. 😉
I would like to put forth an idea to the HEMA community: let’s call things by their proper names.
The whole idea of «nation» is an XIX century construction, and I am trying to argue against applying modern tags («german», «italian», «spanish», etc) to historic entities such as fencing.
Examples that I know well:
The Liechtenauer tradition (let’s call it Kunst des Fechtens, because it sounds cool and marketable) is not «german» (many of its masters belong properly to modern Poland, among other places), nor Fiore was «italian». Both of them were, however, clearly products of the prosperous Holy Roman Empire, so I always try to explain that: different schools developed within a context of economic wealth and constant conflict.
La Verdadera Destreza might have flowered by the efforts of Pacheco as master of arms in the court of Philip IV. But that court, despite what XIX-century historiography might have taught, was not «spanish». Neither did modern Spain exist back then –it was but a cluster of kingdoms owned by sucessive crowns– nor did the house of Habsburg have a particularly spanish leaning, for it managed an empire that covered most of Europe. Furthermore, both Destreza has undoubtedly some italian inspirations and was developed outside of the modern spanish territory (there is a whole bunch of Portuguese Destreza –see www.ageaeditora.com for some samples– and Thibault might as well be called «Dutch Destreza»).
Truth is: the development of fencing theories into fencing treatises is a by-product of wealth and prosperity. In times when gold and power were massed in different parts of what we call Europe, people found resources to put down their fencing knowledge and rejoice in them. Those territories had mutable names that began to crystalise from the XVI century onwards, generally speaking, through a slow process that would have its heydays at the late XVIII (with the French Revolution and the idea of nation=state) and the XIX centuries (with romanticism, the development of modern nationalism and the idea of nation=people+land+language and culture).
These two ideas competed and still do –examples: as late as 1830 modern Spain did not exist, but was instead still a cluster of different kingdoms whose respective pre-national identities echo loudly in modern nationalist movements; the United Kingdom is still nowadays and very clearly a cluster of different nations.
Furthermore, martial arts are a profoundly individual experience, in that everyone that practices (and teaches them) is performing an interpretation on what they were taught. Masters who developed a particular style might have worked within a specific martial culture or within a group (there is the Liechtenauer Society), but these still had to compete with other traditions that coexisted in the same space and time (famed in the popular imagination, and probably false but still worthwhile for this example, is the clash between Quevedo, proponent of the Esgrima Común, and Pacheco).
HEMA in general would benefit from calling the different fencing styles or schools by their specific names («Verdadeira Destreza», «Kunst des Fechtens», «i.33 system») and where not, by their main authors («Saviolo», «Fiore», etc). It is a service to our community in historic rigour and terminological precission.