Campo Lexical da Arte do Combate – Nova Versão

Como este curso estamos a diversificar aulas com a ajuda de Cabaleiro Errante, é importante estabelecer um vocabulário prático comum. (Temos outros documentos para o vocabulário técnico, como o nosso breviário, que merecem também algum tipo de revisão futura).

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Lógica do assunto

O propósito deste Campo Lexical é ajudarmos à normalização do vocabulário que utilizamos para referir partes do corpo, atividades frequentes, equipamento e partes dos simuladores («armas»). Uma versão futura acrescentará nomenclatura para as partes do arnês, mas preciso aguardar à publicação dalgums trabalhos académicos, de modo que não está próxima.

Este documento não pretende ser uma autoridade definitiva, mas foi contrastado com um par de professores e utentes de português, para estabelecer uma relativa compatibilidade com o léxico utilizado ao sul da Galiza.

Porém, o propósito não é tampouco criar um guia de dicionário de poruguês desportivo, senão fixar os termos que nós utilizamos, sob os seguintes critérios:

  • destaque da terminologia histórica, onde estiver documentada (partes das armas)
  • conservação dalguma terminologia patrimonial galega, em uso nas nossas aulas («cavalos», «caluga», etc)
  • destaque das divergências com o uso transminhoto, onde as houver (o uso de «camisola», por exemplo)
  • uma cirúrgica e seletiva exclusão das variantes convergentes com o castelhano («pomo» é o exemplo mais limpo, pois existe na nossa documentação barroca a variedade «maçã»).

Este último ponto tem uma lógica própria: o estudantado da Arte do Combate é perfeitamente fluente em língua espanhola, mas não na galega (local ou internacional). É assim que de forma deliberada não coloco como alternativas termos como «nuca» ou «pomo», comuns à Galiza, Portugal e a Espanha, pois não vão ter dificuldade em compreendê-los na boca dalguém do sul. Se aparecerem no documento, facilitaria-se a escolha confortável da variante mais próxima do castelhano.

Finalmente — uma das fontes utilizadas para este léxico é o artigo que publiquei há uns anos no website da AGEA Editora: «Alguns nomes históricos em galego/português para as partes da espada». Está referenciado no documento, mas fica aqui o link para maior comodidade. O artigo tem à sua vez uma referência exaustiva das origens dos termos aí recolhidos.

 

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Muitos Nomes para a Mesma Arte

A Arte de Liechtenauer é um sistema integral que incorpora a totalidade da panóplia da cavalaria tardo-medieval, e não apenas «espada longa»: implica saber combater a cavalo, com e sem armadura, usando armas de haste tão bem como a mão vazia… Em consequência, nas fontes que estudamos as lições aparecem muitas vezes agrupadas sob diferentes nomes.
 
Segundo a intenção do combate:
  • Ernstfechten / Fechten zu Ernst → a sério
  • Schulfechten / Fechten zu Schimpf → por lazer ou para a prática
Segundo a montura:
  • Fechten zu Fuß → a pé
  • Fechten zu Roß / Roßfechten → a cavalo
Segundo o grau de proteções envolvidas:
  • Harnischfechten → combate com arnês (armadura)
  • Bloßfechten → combate «nu» (em roupa de rua)
Segundo as armas:
  • Ringkunst / Ringen → luta corpo a corpo, com ou sem adaga (Degen)
  • Messerfechten → combate com a espada-cutelo duma mão
  • Fechten mit dem langes swertes → combate com a espada em forma «longa»: com ambas mãos no cabo
  • Fechten mit dem kurzes swertes → combate com a espada em forma «curta»: com uma mão no cabo e outra na lâmina, ou ainda ambas na lâmina
  • Sperfechten / Axtfechten / Fechten mit dem Stangen / Fechten mit dem Sper / etc. → Combate com armas de haste, em geral.
O interessante é que muitas destas divisões podem combinar-se e há muita sobreposição já não apenas nos princípios, mas nas técnicas específicas.
Diagrama de Venn a mostrar a superposição de diferentes áreas da Kunst des Fechtens.
Diagrama de Venn a mostrar a superposição de diferentes áreas da Kunst des Fechtens.
 
Assim, por exemplo, o combate com Mordaxt (Archa) é num 80 ou 90% análogo ao combate com espada curta; as técnicas de Ringen com adaga são assimiláveis a técnicas de combate corpo-a-corpo com a espada (Ringen am Schwert). Muitas das técnicas da espada longa são análogas ou muito semelhantes às técnicas do Messer…
 
Ilustrando esta reflexão, um intento de criar um diagrama de Venn que mostre a forma em que estas correspondências acontecem. Podes descarregar uma versão em PDF neste link.
Vale advertir que as áreas de sobreposição não estão a escala.

 

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Por que usar a terminologia original?

…ou, noutras palavras: por que não traduzir os termos? Zornhau para «Cutelada da Ira», Ochs para «O Boi», etc. Fácil, não é?

Mas… como traduzir Winden? Hengen puderam ser «as pontas suspensas», mas é um bocado longo, e dizer apenas «as suspensas» ou «as suspensões» não funciona assim tão bem. E como traduzir Leger? VersetzenNachreißenUberlauffen, AbsetzenDurchwechseln? Zucken? DurchlauffenAbschneiden? 1

Com certeza, podemos pensar em alternativas («Guardas», «Contra-técnicas», «Perseguir», «Ultrapassar» e «Desviar», etc). Mas, realmente traduzem bem o termo original? Fica mais claro o que quereis dizer através delas? Não envolvem pressupostos por parte de quem as escuta?

Nas aulas da Arte do Combate utilizamos uma terminologia próxima às fontes estudadas, mantendo os termos próximos2 da língua original antes que traduzidos, porque acho tem os seguintes benefícios:

  • Contextualiza o que fazemos: estudar uma arte marcial do S.XIV originária no Sacro Império Romano-Germano –e não assim uma arte do norte da península itálica no S.XV, ou a Verdadeira Destreza peninsular do S.XVII, ou o Jogo do Pau contemporâneo autóctone da Galiza e Portugal.
  • Cria um vocabulário técnico com significados específicos, o que evita equívocos e problemas de tradução. Assim, Winden é uma acção específica, sem nenhum outro tipo de interpretação que o termo traduzido possa dar a entender fora do explicado e treinado na aula.
  • É um valor de marca que dá identidade à prática. Não é bom ignorar o valor do marketing. De igual modo que as artes marciais orientais se identificam lexicalmente polo seu vocabulário (SenseiKiaiMorote Seoi Nage…), bem como a esgrima desportiva ocidental actual emprega termos franceses (riposte, flèche, allez…) ou italianos (maestro, radoppio…), ou o boxe utiliza mormente terminologia inglesa (jab, uppercut, ring, K.O.…), utilizar termos germanos no Kunst des Fechtens ajuda a fazer visível e dar carácter a olhos da população geral.
  • É parte do que fazemos! Se é possível separar história e técnica na nossa prática é tema para outro artigo. Mas a nossa arte marcial é histórica –produto dum tempo, cultura e contexto diferentes dos nossos– e conhece-lo e compreende-lo é necessário para a poder estudar em propriedade.

Reconheço que isto acrescenta uma carga de aprendizagem na pronúncia, escrita e assimilação dos significados para quem estuda a Arte do Combate. É possível aliviar esta carga facilitando nas aulas apontamentos da terminologia utilizada, por exemplo. Também é recomendável encorajar às estudantes a aprender a pronúncia correta dos mesmos (e, logicamente, utilizar essa pronúncia nas aulas).

Como clarificações finais, repare-se em que estou a censurar a tradução sistemática de terminologia original. Quer dizer: inventar um termo galego (português, brasileiro) para conceitos do MHD original, e descartar este ultimo do uso quotidiano.

Uma outra cousa é empregar termos autóctones (históricos, documentados) da esgrima ibérica. Nesse caso faz-se necessário combinar a introdução de termos da KdF com a preservação, recuperação e promoção do léxico original da nossa esgrima. Isto não tem por que ser conflituoso: há espaços em que utilizar o termo doméstico (no falar descontraído) e outros nos que utilizar o termo técnico (no nome ou descrição duma técnica).3 Tomemos por exemplo as partes da espada: «folha» (Klinge), «ponta» (Ort), «maçã» (Knopf)… são termos de uso, parte do nosso vocabulário. Dizer «podes pegar na maçã ou no cabo» é aceitável e útil. Por contra, se falar da «ponta do Zornhau» é válido, também é bom chamar a isso Zornort.

Assim, o elemento chave será, como sucede com frequência, a moderação. É bom sempre temperar com sentido comum o uso da terminologia: se dizer Durchwechseln resulta difícil, pode-se utilizar «troca de linha». Se Binden e Winden geram confusão, pode-se falar do «ligamento» no primeiro caso, etc. Mas não falhemos em utilizar os termos originais, especialmente em contextos formais, porque são, também, parte da Arte do Combate.

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