→ Recentemente comentávamos no grupo de Telegram da AdC um fio de conversa do subreddit r/fencing onde se discutem os berros e o ruído nas competições de esgrima olímpica. O estudantado da Arte do Combate pediu a minha opinião ao respeito, e pensei que estava bem resumir aqui também os pontos daquela conversa para futura referência.
Se ledes o fio de Reddit, veredes que a questão dos berros e do ruído na esgrima olímpica causa problemas. Há gente que se satura rapidamente com espaços ruidosos. Um encontro de esgrima (e de HEMA, mais) já gera muito ruído de seu, com o bater das espadas, movimento de pés, etc. Ademais, tendem a ser em pavilhões com muito eco, amplificando o assunto. Se a isso somamos os berros, pois pior.
Além do ruído de seu, os berros têm para mim o problema que envolvem, direta ou indiretamente, a oponente. No melhor dos casos, é um berro de êxtase ou de frustração se consegues ou falhas em fazer o que pretendias. Isso não é exatamente um ataque pessoal, mas alguma pessoa pode ver-se coibida ou limitada se o interpreta assim.
Até certo ponto é responsabilidade de cada quem interpretar bem o que está a suceder (como o é lidar com espaços ruidosos, se a atividade o demanda). Mas, por outra parte, penso que numa atividade de grupo temos a responsabilidade de tentar criar o melhor ambiente possível para a gente com que partilhamos a atividade — e isso, para mim, implica fazer que se senta confortável.
E já no aspeto estético — eu não gosto. Penso que há uma certa dignidade no que fazemos que está bem manter. Está bem reconhecer os tocados da outra pessoa. Está bem rechaçar os nossos se consideramos que não foram de qualidade. Está bem não explorar uma situação que vai além do contexto do assalto — por exemplo, se algum elemento externo distrai a outra pessoa.
Na mesma linha, acho que está bem não berrar, como norma. Igual que o público dum dos nossos assaltos normalmente não berra animando a qualquer uma das partes, penso que as combatentes tampouco devem berrar.
Há exceções, obviamente. Às vezes uma ação é tão espetacular que o público solta uma ovação, ou mesmo aplaude. Às vezes cagamo-la tanto que é inevitável não soltar uma maldição de frustração. Eu penso que isso tudo é normal, e não se passa nada. O elemento chave é a atitude. O que discute o fio que vos passei é a atitude, mais ou menos dominante nalguns setores da esgrima desportiva atual, de que berrar é parte do desporto.
Eu penso — mas já sabedes que penso isto de muitos aspetos do que fazemos — que essa atitude de berrar é intrínseca ao aspeto competitivo, polo menos tal e conforme entendido hoje em dia. Penso que não podemos ter um circuito regular e consolidado, padronizado e com rankings, e onde eventualmente alguma gente até consiga ser profissional… sem ter gente que berre. Os tenistas berram e rompem raquetas. Os futebolistas berram com os árbitros ou outros futebolistas. Os atletas deixam-se cair de joelhos a chorar se perdem… Isso todo é o que vemos na cultura mediática do desporto de competição atual.
Se levamos a esgrima histórica nessa direção — a do desporto de competição de massas — isso é o que vamos obter. Vai ser quase impossível pretender uma cultura estética divergente da hegemónica.
Portanto, e em resumo:
penso que berrar (e fazer ruído, em geral) é pouco respeitoso
penso que ademais é pouco estético
penso que só se pode evitar via cultura e atitude
e penso que essa cultura e atitude alternativas não são compatíveis com a direção que a esgrima olímpica tomou, que parte das HEMA parece querer.
Caveat
Que uma gente queira essa cultura de competição, e eu (e outra gente) queira(mos) outra não é exatamente uma dicotomia. Podem existir ambas. É possível ter eventos de HEMA-desporto onde a gente berre e atue como na esgrima olímpica, e é possível ter em paralelo eventos calmados onde a gente foque na diversão, nos aspetos técnicos e em partilhar a experiência em coletivo.
Há espaço para conviver nas diferentes aproximações. Mas é importante que estabeleçamos as expetativas, nas atividades que organizamos, para que as pessoas que a elas atendam saibam como se comportar nelas, e o que podem aguardar.
→ Esta é uma tradução parcial, autorizada e adaptada do artigo How to train with beginners, do Guy Windsor. O texto original é mais longo mas também mais específico da sua School of the Sword, e das experiências pessoais do próprio Guy. Porém, a parte central que aqui recolho resulta de aplicação para qualquer pessoa que trabalhe com gente menos experimentada na Kunst des Fechtens, motivo polo que fica como documentação para o estudantado da Arte do Combate.
[Este texto] reflexiona acerca de como o estudantado com maior experiência pode utilizar as pessoas novas que se incorporam às aulas para treinar de modo eficiente em proveito de ambas partes. […]
Deves ser um modelo perfeito. A regra das pessoas iniciantes é esta: mostra a técnica certa mil vezes, e acabarão por copiar corretamente. Mostra a técnica errada uma vez, e copiarão perfeitamente nessa primeira vez. Digo isto sem desrespeito. É simplesmente uma verdade, e nunca vi uma pessoa iniciante para quem não fosse assim. Portanto, ter iniciantes perto exige que todas as tuas ações sejam tão perfeitas quanto for possível.
Trabalha ao teu próprio nível. Uma das cousas que as pessoas iniciantes precisam aprender é a terminologia da Arte. Com elas fazemos cousas como chamar os nomes dos deslocamentos (reto, estranho, passo, compasso, etc.) para responderem com o movimento correspondente. Para o estudantado mais experiente na mesma turma, isto pode parecer miseravelmente tedioso, mas não deveria: espera-se que trabalhe no seu próprio nível. Assim, enquanto toda a aula está a fazer a mesma atividade, algumas pessoas trabalham em lembrar os termos; outras no aperfeiçoamento da sua mecânica; e algumas em possíveis aplicações, desde geração de energia, defesas, ou aplicações técnicas específicas.1
Aproveita o caos. Em exercícios de pares, a pessoa menos experimentada naturalmente cometerá erros. Excelente. Uma verdadeira fonte de caos! O ataque pode ser forte demais, estar muito longe ou muito perto, na linha errada… qualquer cousa. O teu trabalho é adaptar sem esforço e espontaneamente o exercício às condições específicas do ataque que recebes, não ao que esperavas. Isto exige o 100% do foco no que acontece. Quando for a tua vez de fazer o ataque deverás demonstrá-lo perfeitamente (conforme o exercício, como é óbvio). Desta forma teu treino alterna entre escolhas táticas 100% perfeitas em tempo real e mecânicas 100% perfeitas no teu próprio tempo. Parece um exercício 100% perfeito, não é?
É bom também teres presente que:
O ataque que recebes nunca é «errado»: só te atingem se falhas na defesa.
A tua correção da forma em que a outra pessoa executou o ataque será muito mais convincente se ocorre após teres sucesso na defesa, do que se vem depois de o ataque «errado» atingir-te.
Educa modelando, não explicando. As pessoas iniciantes não são estúpidas: apenas ainda não receberam o mesmo treino que ti. Precisam de oportunidades para praticar, não duma palestra.
Este tipo de treino exige 100% de foco nas especificidades do ataque que recebes, não no que esperas.
Ao treinar com iniciantes, recebes a oportunidade de trabalhar «em profundidade», melhorando a forma em que executas algumas ações. Por contra, nesse treino terás menor oportunidade de trabalhar «ao largo», usando uma maior gama de ações (porque isso vai confundir a pessoa iniciante, já de seu sobrecarregada). Quando emparelhes com estudantes com mais experiência é que poderás trabalhar «ao largo», sempre que isso não entre em conflito com os objetivos gerais da aula.
Por estes motivos, deves aprender a apreciar o influxo de novos geradores de ações aleatórias que exigem a tua perfeição. Tem presente também que, numa década ou duas, essas pessoas podem ser muito melhores na Arte do que ti és agora. Mas sempre lembrarão e sentirão gratitude pola ajuda que lhes deste quando começavam. Podes estar a ajudar a treinar o próximo Bruce Lee, ou Aldo Nadi, ou mesmo Johannes Liechtenauer!
Se achaste estas reflexões úteis, compartilha com as tuas amizades!
Em 1942, depois do ataque japonês sobre Pearl Harbour, os USA estão a livrar uma guerra no pacífico que com frequência envolve ações na floresta selvática e confrontos contra cutelos, machetes, baionetas e mesmo com espadas dos oficiais japoneses.1
Neste contexto, Frederick Ehrsam, C.E.2 escreveu um manual para a faca ou cutelo de campo LC-14-B. Este estava desenhado para o trabalho no mato, e vinha acompanhado de vários instrutivos para o seu aguçado e uso como ferramenta, mas também dum pequeno livrinho de 16 páginas titulado Fighting with U.S.A. Knife LC-14-B (The woodman’s pal).
O tipo de esgrima prescrita no texto, necessariamente superficial, tem uma clara inspiração na esgrima de sabre (como também a guarda do cutelo), adaptada. Porém, o mais interessante para nós são várias instruções de caráter geral dadas para soldados que, com probabilidade, tinham zero experiência em esgrima. De entre o conjunto destaca, na página 11:
«Feint and attack until you hit. If your attack should miss or be parried, do not stop; change the attack continuously from one point to another until successful, or until you are forced to stop.
» If any movements have missed or have been parried […keep attacking exposed openings]. The idea being that as long as you attack, the opponent must parry; if you stop attacking, he will take the initiative and force you on the defensive.»
«Executa fintas e ataques até atingires. Se o teu ataque falha ou é defendido, não te detenhas: continua o ataque mudando de um ponto para outro até teres sucesso, ou até que te vejas na obriga de parar.
» Se os teus movimentos falham ou são defendidos […continua atacando as aberturas expostas]. A ideia é que enquanto te mantiveres no ataque, a outra pessoa deve defender; se deténs o ataque, tomará a iniciativa e obrigará-te a a defender a ti.»
— Frederick Ehrsam, Fighting with U.S.A. Knife LC-14-B, 1942, p.11.
Tradução própria.
Vale comparar isto com os conselhos recolhidos no manuscrito GNM HS 3227a de ~1389 (que temos traduzido e publicado sob o título Há Uma Única Arte da Espada):
«M|Otus · das worte schone / ist des fechtens eyn hort vnd krone /
|der gancze mat~iaz / des fechtens / mit aller pertine~ciã / |Vnd der artikeln gar / des fundamentes / dy var / |Mit name~ sint genant / vnd werden dir hernoch bas bekant / |Wy deñe eyñ nur ficht / zo sey her mit den wol bericht / |Vnd sey stetz i~ motu / vnd nicht veyer wen her nit / |An hebt czu fechte~ / zo treibe her mit rechte / |Vm~er in vnd endlich eyns noch dem andñ künlich / |In eyme rawsche stete / an vnderlos imediate / |Das iener nicht kome / czu slage des nympt deser frome~ / |Vnd iener schaden / |wen her nicht ungeslage~ / |Von desem kome~ mag / tut nur deser noch dem rat / |Vnd noch der leren / dy itczunt ist geschreben / |So sag ich vorwar / sich schützt iener nicht ane var / |Hastu vornome~ / czu slage mag her mit nichte komen /
¶| |Hie merke~ · das · freque~s motus · beslewst in im / begy~nis / mittel · vnd ende / alles fechtens / noch deser kunst vnd lere / |alzo das eyñ yn eyme rawsche / anhebu~ge / mittel / vnde endu~ge / an vnderlos vnd an hindernis synes wedervechters volbrenge / |vnd iene~ mit nichte lasse czu slage kome~ […]»
«Motus: esta verba formosa
é da Arte coração e coroa.
» Pois de facto é desta matéria e não doutra que trata a Arte do Combate. Todo o que esta palavra contém e os fundamentos que nela há serão logo nomeados e explicados.
» E quando fores lutar deves ter estes fundamentos em mente e permanecer em movimento, sem hesitar quando tiveres alguém diante. Deves despregar as tuas artes sem temor, com confiança e sem duvidar, num fluxo constante de ações, para não lhe dares oportunidade de atacar. E assim vás ferir a outra pessoa, que não vai poder atacar por estar ocupada na defesa. E por isto eu digo: «não há defesa sem perigo». Se entendes isto, não terá oportunidade de te ferir.
» Então, tem presente: Frequens Motus, movimento constante, está no início, meio e fim de toda briga, e assim diz esta Arte e estas lições. Deves passar pelo início, meio e fim do combate num único fluir de movimentos, sem te deteres e sem que ninguém te detenha, e sem lhe dares oportunidade de atacar.»
— Anónimo, GNMHS 3227a, ~1389 f.[16r-17v].
Transcrição por Dierk Hagdorn, na Wiktenauer.
Tradução própria.
Sempre achei os conselhos do 3227a surpreendentemente contemporâneos, semelhantes aos que daria um manual do nosso presente. Comparados com as instruções deste manual de combate de há quase um século — certamente com vontade de ser aplicadas — o porquê é evidente: Há Uma Única Arte da Espada.
Há uns dias que o camarada Aldán,1 que treina na Sala Viguesa de Esgrima Antiga, escrevia com uma pergunta muito interessante. A resposta e conversa a seguir deu para bastante proveito polo que, com o seu consentimento, passo a reproduzir cá a sua pergunta e a minha resposta, ligeiramente editada em benefício do artigo:
Levo tempo cunha dúbida detras da orella, xusto me acordei hoxe e queria pedirche a tua opinion:
Sempre me preguntei que tipoloxia de esgrima se practicaria de maneira xeral na Galiza dos s XII a XV. Preguntabame se aplicarian o recollido nos tratados I.33 e 3227a, ou se pola contra seguirian algunha outra tipoloxia.
Por que dou por sentado estas dúas tipoloxias? Por que Pedro de Soutomaior foi un dos primeiros (se non o primeiro) en introducir as armas de fogo na peninsula, e ao parecer debia de ser unha persoa que apostaba pola innovación, así que se coñecia a existencia destas armas e conseguiu traelas non me extrañaria que coñecera e trouxera estes estilos.
Posiblemente isto non teña ningun sentido nin relación causa efecto, tamén dicir que falo sen sustentarme en ningunha evidencia, son puras elucubracións.
Mais recentemente vin en Wiktenauer un novo mestre coñecido como Ibn Hudayl. Parece ser que este mestre escriviu en arabe un libro sobre a guerra onde fala de distinta armas no século XIV. Imaxino que aquí poderiamos atopar pistas sobre o estilo de esgrima da peninsula neses anos.
Ben, como ves non teño nin idea, e gustariame trasladarche a ti esta dubida por se tes algunha opinión o respecto, que tipoloxia, ou tipoloxias de esgrima crees que se desenvolveron en Galiza entre os seculos XII e XV?
Pois… é muito boa pergunta, e uma que eu também me tenho feito.
Até onde sei, de momento não temos documentação do tipo de esgrima tardo-medieval que se praticava nestas terras, polo que tudo tem que ser inferência e supostos prudentes. Seria ótimo se nalgum momento aparecesse, nalgum tombo da Catedral ou algures, um sistema de esgrima autóctone ou provas documentais da prática doutros importados…
Porquê não encontramos tratados galegos
O certo é que os tratados de esgrima (que eram caros de fabricar, e portanto um objeto para gente rica) seguem o dinheiro. No final da idade média, isso é o eixo das cidades itálicas e a Hansa — quer dizer, justamente atravessando o Sacro Império de sul a norte. Quando, virando o S.XV, o poder económico desloca da centro-europa para o eixo leste-oeste íbero-itálico, aí é onde vão aparecer os novos tratados (e com eles, a Destreza). Depois, com o auge da França moderna, será esta a que tome o relevo, etc… Isto é uma simplificação, é claro, mas serve de grosso quadro para a nossa circunstância.
Outro requerimento importante para a existência de tratados (de qualquer matéria) é que exista um público que os valorize. As universidades (e antes delas as escolas catedralescas, etc) que foram nascendo no ultimo terço da idade média são uma mostra da (relativa) alfabetização da sociedade. Aos poucos vai existindo uma nobreza mais geralmente culta (não é certo que a nobreza medieval fosse profundamente bruta e inculta, como sabemos, mas semelha existir uma generalização, particularmente da cultura escrita, entre a nobreza a medida que avança o medievo — para mostra, ver quem eram os autores das nossas cantigas, ou quem manda traduzir a Crónica de Troia à nossa língua) e uma camada burguesa mais formada (que deve levar os seus livros de contas, os seus pleitos e contratos, etc). Esta é a gente que consume e demanda os livros de esgrima (entre outros), e que os mostra como objetos de ostentação social (no caso da burguesia, provavelmente para se apropriar dos atributos da nobreza, no processo de a substituir).
Somados estes dous fatores (que são apenas a superficialidade do assunto, olho) temos que o apogeu económico da Galiza medieval está por volta do S.XII, polo menos relativa aos povos que tinha ao redor (e com isso refiro-me à Europa ocidental inteira). Aí é onde deveríamos encontrar tratados de esgrima, mas até onde sabemos, ainda não começara a moda de os fazer. Não existiam ainda as universidades, não estava ainda (em termos gerais) suficientemente desenvolvidas as camadas meio-ricas da sociedade, e não existia um acumulação de capital suficiente para fazer que os livros de esgrima, que não são objectos de culto, justifiquem a sua existência.
Após o apogeu da Era Compostelá, a Galiza vai cair em vários séculos de guerras quase continuadas, com a nobreza galaica tentando recuperar a hegemonia (ou resistir o seu deslocamento cara Castela). O apogeu destas será a longa Guerra Petrista da final do S.XIV, e a agonia final prolonga-se nas Guerras Irmadinhas e a guerra em defesa de Joana «a Excelente Senhora». Após o fracasso da politica militar galega nestas, os próprios Reis Católicos procedem à famosa «Doma e Castração» que, a efeitos práticos, elimina essas camadas sociais que puderam, em séculos posteriores, ter produzido ou consumido tratadistica autóctone — iniciando, em suma, os Séculos Escuros, onde a nossa cultura em essência desaparece até o S.XIX.
Isto coloca, do meu ponto de vista, a Galiza dos S.XIV – XV (o início da tratadistica de esgrima que conhecemos) numa situação semelhante à da França na altura. O Reino dos Francos era o reino europeu por excelência, flor da cavalaria, etc. Por quê não aparecem os primeiros tratados de esgrima nele?2 Em parte porque não existe uma distribuição de capital entre as camadas altas da população semelhante à do Sacro Império (mais descentralizado, com muitos nobres e burgueses, e com esse eixo comercial norte-sul). Em parte também porque a guerra constante distrai a atenção da gente para matérias mais urgentes: estavam ocupados matando-se como para andar a ler em livros duma esgrima que, afim de contas, era com quase total certeza 99% lazer.
A esgrima que de certo sim era praticada
Então… essa é uma possível explicação de por quê não há (ainda que ogalhá algum dia encontremos algo) material autóctone. Mas, não se estudava esgrima?
Com certeza, sim. Havia espadas, comparáveis às do resto do continente, gente de armas, e gente a combater com elas. Havia, portanto, qualquer tipo de formação ao respeito. A questão é como era essa formação, de onde vinha, quem a ministrava. Para responder a isto seria necessário fazer um estudo a fundo de como estava organizada a sociedade galega na altura, e particularmente as cidades — matéria da que eu conheço pouco (uma de tantas cousas pendentes de aprender).
É possível que existisse um sistema de esgrima autóctone, mas não sabemos. Talvez se praticassem muitos estilos diferentes (quase com total certeza essa era a situação em quase qualquer lugar da Europa na altura). É possível que parte desses estilos fossem importados.
Como ti bem apontas, é importante incidir para a o público geral no fato de a Galiza não ser, na altura, «periferia», nem um lugar atrasado nem longe das vias de comunicação ou dos centros de poder. A Galiza estava em contato direto com a corte inglesa (e, suspeito, com a francesa também), e sempre teve contato com Roma e a península itálica. E, sobra dizer, o contato com Portugal era tal que basicamente era a mesma cousa. Por isso podemos ver arneses como os dos Andrade (especialmente o d’«o Mau»), de altíssima qualidade.
Sabemos que o Conde Andeiro estava a cavalo entre Galiza, Portugal e Inglaterra. Era político, e nessa época cabe supor-lhe sequer um pouco de interesse no assunto marcial. Há outros muitos exemplos, claro. A questão é: puderem estas gentes ter importado algum dos estilos que temos documentados? Não é improvável, mas novamente nada temos documentado.
É possível, por exemplo, que dada a ligação inglesa, nalgum momento tivéssemos algum contato com o tipo de esgrima recolhida no Man yt wol, o Cotton Titus e o Ledall. Há quem quer fazer isto essencialmente idêntico à KdF, mas eu tenho sérias dúvidas ao respeito.3
Também pudera ser que algum nobre, burguês, viajeiro, peregrino ou mercenário trouxesse consigo a Kunst do Império. Ou a esgrima do Grupo de Nuremberga. Ou a do Gladiatoria, ou a de Fiore. Por que não? Se calhar a burguesia nascente das Revoltas Irmadinhas estava a estudar alguma destas escolas, ou uma mistura ou bastardização das mesmas.
Outro tema é o das fontes árabes. Como bem dizes, há material. Não sei como de aplicável seria para nós: dos povos da península (talvez excetuado o basco), o galego era o menos islamizado, muito virado para o atlantismo e os contatos continentais. Para além disto, estamos a falar já duma época de declínio na hegemonia cultural dos estados islâmicos na península. Tenho dúvidas a respeito do que pudesse chegar à prática da esgrima da Galiza, mas quem sabe… o estudo das fontes árabes (para o que possa trazer para nós ou as HEMA em geral) está por fazer, e é certamente muito necessário. Qualquer cousa tem que existir aí.
Em resumo: se a pergunta é «pudera ser que alguém praticasse a tradição X na Galiza», a minha resposta é «é certamente possível». Estávamos bem conectados, e a troca cultural era importante. Se a pergunta fosse «existiu uma tradição de esgrima autôtone», já duvido mais. É possível — até certo ponto, qualquer pessoa a pegar numa espada e improvisar técnicas de combate mais ou menos elaboradas estava a criar o seu próprio sistema, e portanto por definição era um sistema naturalmente galego. Mas isso sucedia em toda parte, em maior ou menor grau. Certamente também sucedeu na Galiza, mas o debate não é esse. Quando falamos de HEMA estamos a falar dos sistemas dos que ficou registo documental. Nesse sentido há que dizer, tristemente, que não me consta termos nada.
Há tempo que estou a fazer um certo seguimento da atividade das HEMA na nossa esfera linguística, já que é um dos meus interesses principais. Tento recuperar toda a informação possível dos grupos e pessoas que a estão a estudar.
Se tens interesse em partilhar na discussão desta comunidade, podes aderir o grupo de Facebook «Hema do Brasil, a Galiza e Portugal». Lá trocamos notícias conjuntas, fazemos visível a atividade dos diferentes grupos e trabalhamos em projetos comuns de normalização léxica, teórica, etc.
Criei também um mapa onde recolho os grupos ativos de HEMA no Brasil, a Galiza e Portugal:
Os critérios de inclusão no mapa são laxos e, sou ciente, subjectivos. Listo nele grupos dos que tenho relativa certeza estão a estudar e treinar HEMA de forma relativamente séria. Quer isto dizer, não apenas uma vista por acima, mas com intenção de continuidade. Faço assim porque quero que seja um recurso útil a quem procura um grupo com que treinar, ou parcerias para a investigação.
Quer isto dizer que o mapa não contém apenas grupos de HEMA «puros», mas também qualquer coletivo que, enquanto trabalha outras atividades (HMB, esgrima desportiva, cénica, outras artes marciais) também, esteja a pesquisar ou trabalhar nalgum grau, mas de forma estável e vísível.
Para julgar isto, apenas posso descansar em testemunhas de terceiras pessoas e em publicações (textos, imagens, vídeos) a mostrar a atividade. É por isso que agradeço, para quem enviar informações dum novo grupo, partilhar essas mostras da atividade comigo também.
Se quiseres achegar informações ao mapa, podes escrever para mapa@artedocombate.gal.
Há pouco passei os exames necessários para obter a carta de condução. Era uma tarefa que tinha pendente desde havia muitos anos. Até o presente não achara realmente necessária, deslocando-me em transporte público, mas a vida muda e novas motivações surgem.
Devo reconhecer que nunca foi um assunto do meu interesse, e em consequência não prestei nunca atenção nenhuma as questões relativas os carros (funcionamento, controlos) e a estrada (marcas viárias, códigos explícitos e implícitos, e até orientação básica). Portanto, aproximei a este processo desde uma ignorância bastante absoluta. E no aprendizado tive, várias vezes, sensações que me traziam memórias dos treinos de artes marciais.
Senti essa falha de familiaridade inicial ao ter nas mãos uma ferramenta totalmente nova, desconhecida, cujo funcionamento, medidas, feedback e comportamento desconhecia. Necessitei tempo e repetição de movimentos para me fazer com as distâncias, saber até onde chegam partes dela, quais são forças necessárias para a pôr em movimento e as inércias uma vez que já está, etc.
Experimentei o desconhecimento das normas de trânsito, a falha de certeza no que fazer. Em ter que aprender a ler um novo sistema de sinais e responder a elas com agilidade. Fui ciente que tinha um conhecimento teórico de isto tudo, mas que existia uma distância considerável entre conhecer essa teoria e ser quem de a explorar na prática.
E, como em qualquer arte marcial, redescobri o imperativo de observar o que as outras pessoas fazem enquanto eu trabalho: quais são as suas ações e intenções (por vezes não coincidentes), estar alerta e agir em consequência. Aprender, por exemplo, a ler quando um carro vai virar pelos sinais subtis que dá, e não aguardar apenas a que sinalize através do indicador (cousa que muitas vezes não sucede).
Recentemente fiz várias viagens longas e tive esse momento de epifania em que descobri que já sabia fazer isso tudo (melhor ou pior, mas suficientemente bem como para poder levar o carro várias horas seguidas, por estradas e autoestradas desconhecidas) e a condução convertia-se nesse fluxo de acções espontâneo, informado polo que sucede no exterior mas ao tempo inconsciente, ou apenas parcialmente consciente. Esses momentos de estado de fluxo, de integração com a arte que seja que estejas a praticar, em que tudo o que estás a fazer vira natural e sem esforço, é para mim uma das recompensas maiores do estudo de qualquer disciplina.
Acho que é importante reflexionar sobre estas cousas. Tenho insistido mais duma vez nas aulas ao meu estudantado que há muitas experiências na vida que «são artes marciais» na forma em que as aproximamos: aprender um novo conjunto de habilidades (como guiar um carro), encarar e resolver conflitos (ou descobrir que não há vitória possível neles e é melhor fugir), melhorar através da auto-disciplina e trabalho sistemático (como aprovar uns exames qualquer), etc.
Não acredito realmente nesse repetido conceito de que as artes marciais tenham qualquer qualidade especial que as faz dar lições para a vida. Mas é certo que todas as experiências que acumulamos interagem entre si, e quando uma delas ocupa um lugar importante na nossa mente com frequência serve de padrão para estruturar, analisar e entender o resto da existência. Imagino que um violinista sentirá o mesmo acerca da música, ou uma carpinteira no trabalho da madeira. Para nós que estudamos a fundo uma arte marcial, é quase inevitável vermos o universo através dela. E isso, acho, facilita a vida, e traz paz.