O Tetramorfo das virtudes de Paulus Kal

O design internacional em RedBubble.

[There is an english version of this article.]

Temos um novo design de t-shirt! Há duas formas de consegui-lo:

  • Para o estudantado da Arte do Combate: falai comigo em aulas.
  • Para outras pessoas que queiram luzir as virtudes da Arte, uma variante está à venda em RedBubble, junto com os outros nossos designs.

Como nada na Arte é arbitrário, podes continuar a ler para sofrer uma explicação bastante longa acerca do que este design significa.

O original

Paulus Kal foi um mestre da Arte que contra o final do S.XV escreveu um dos manuais referentes no estudo da Kunst des Fechtens — entre outras cousas, é onde se recolhe a «Companhia de Liechtenauer», os mestres associados que (presumivelmente) ensinavam a KdF.

O tetramorfo no seu desenho original.

Nas primeiras páginas deste seu manuscrito há uma imagem evocativa das virtudes que devemos cultivar:

  • olhos de falcão = previdência, inteligência
  • coração de leão = valor, assertividade
  • pés de cerva = agilidade, mesura

O texto que a rodeia diz:

ich hab augen als ein valk
das man mich nit beschalk

ich hab hercz als ein leb
das ich hin czu streb

ich hab füs als ein hint
das ich darzw und dauon spring

[tenho olhos como um falcão / para não cair no engano // tenho coração como um leão / para continuar sempre avante // tenho pés como uma cerva / para saltar perto e longe]

Que traduzido livremente, para conservar a rima, pode ficar:

como falcão, esperto,
os enganos espreito

como bravo leão
combato com tesão

ágil como cerva
piso com certeza

Afundando no simbolismo

O segno de Fiore.

Há uma imagem semelhante (o chamado segno) nos tratados da Flos Duellatorum de Fiore de’i Liberi, que preferia quatro virtudes: prudentia (a olhada do lince), celeritas (o tigre), audatia (o coração do leão) e fortitudo (os pés do elefante).

Não parece casual, porém, o número e a escolha de animais feita por Paulus Kal. Primeiramente porque representa traços estilísticos diferenciados da Kunst versus a Flos: a velocidade nos pés de cerva vs. no braço do tigre, e a ausência duma referência à força.

A força, na Kunst des Fechtens, não é considerada uma virtude. O GNM HS 3227a diz, explicitamente: «É por isto que a Arte de Lichtenauer é Arte verdadeira: porque não requer força. Antes vences nela através da perícia que através da força — caso contrário, quem fosse forte vencia sempre. E se assim fosse, que utilidade teria a Arte?». (Lembra que temos à venda uma tradução do 3227a para o português.)

Afundando mais na interpretação simbólica, os três animais puderam representar os três grémios de mestres da Arte no Império:

  • Leão alado de são Marcos = Marxbrüder
  • Águia [Falcão] de são João = Federfechter
  • Boi [Cerva] de são Lucas = Lukasbrüder

Este simbolismo aparece em parte confirmado nas representações das armas destas sociedades que até nós chegaram. O leão alado aparece como animal portador ou defensor das armas dos Marxbrüder frequentemente na literatura. No caso dos Federfechter o animal heráldico que os guarda costuma ser um grifo. As referências aos Lukasbrüder são muito escassas e não conheço nenhum símbolo particular associado, mas a coincidência semelha demasiado grande para ser casualidade.1

Os animais dos quatro evangelistas no Livro de Kells.

Ao colocá-los em forma humana Paulus Kal está a unir os três grémios no «animal» do quarto evangelista, são Mateu: o ser humano. Não existiu (que saibamos) um grémio associado a são Mateu, mas pudéramos inferir que sob a sua proteção ficariam os espadachins comuns ou não afiliados.

Ao combinar estes quatro seres vivos Paulus Kal está a produzir um tetramorfo — uma criatura que na terminologia bíblica representa os quatro evangelistas em conjunto. No contexto da meta-leitura da Kunst des Fechtens, isto representaria a união das virtudes dos quatro tipos de espadachins. Em puro estilo aristotélico, Kal está a sugerir que a verdade da palavra de Liechtenauer não está nas formas e técnicas de nenhum desses coletivos, senão em apanhar o melhor de cada um deles.

Esta apropriação por parte da Kunst dos animais evangélicos não é casual: através dos diferentes escritos há uma clara inspiração na forma — não necessariamente no fundo — do cristianismo. Não deve ser surpreendente: era um elemento omnipresente na cultura da época.

Assim, a figura de Liechtenauer tem com clareza uma dimensão messiânica: ele é quem traz a Palavra da Arte na Zettel (arte que ele «não criou, porque já existia»), de forma semelhante a como Moisés traz a Palavra de Deus nas Tábuas da Lei. Ele é acompanhado dos seus discípulos, que estendem a sua palavra pelo mundo — a Sociedade de Liechtenauer, em certo parelho aos Apóstolos cristãos2.

O suposto Liechtenauer no Cod. Danzig 44 A 8, 1452

O livro da Revelação, 4, descreve um trono no que senta  o Criador vestido de vermelho, custodiado polos «quatro seres vivos»: águia, leão,  boi e o ser humano. Será casualidade que a única imagem que temos a (supostamente) representar Johannes Liechtenauer seja dum velho mestre com roupas vermelhas sentado num trono?

Será também casualidade que as origens conhecidas da Kunst descansem em quatro fontes — como os quatro evangelhos? Efetivamente, entre os textos mais antigos temos as glosas anónimas do 3227a e as atribuídas a Sigmund Ringeck, Peter von Danzig e Martin Huntfeltz (todos estes três na listagem de «companheiros» dada por Kal).

O coração da Arte, segundo insistem o 3227a uma e outra vez, descansa na Santíssima Trindade Schwach/Stark/Indes — ou Vor/Indes/Nach, noutra leitura. Três são também as formas de ferir com a espada: as Drey Wunder (corte, ponta, cutelada).3

Há outros muitos elementos correspondentes entre o formalismo cristão e a KdF que merecem um artigo aparte. Como já citei acima, tratava-se dum elemento cultural muito presente na época, e portanto oferecia uma retórica reconhecível. Isto ajudaria, entre outras cousas, na aceitação do discurso, e também na facilidade para lembrar os ensinamentos.

A recriação moderna

Embora as imagens originais recolhidas nas cópias do tratado de Paulus Kal tenham um inegável sabor medieval, ficam distantes da estética e harmonia modernas. Para tentar atualizar este conceito, peguei em elementos de vidreiras de várias catedrais e paços históricos, reunindo as partes dos animais evangélicos nesta soa figura.

O tetramorfo original portava já a a espada (que é o instrumento principal da Arte). Para o nosso propósito eu decidi somar noutra mão o livro (a via pola que a Arte chega a nós). Livro e espada são símbolos frequentemente usados hoje nas HEMA.

Para completar o conjunto a besta veste na cabeça uma coroa que simboliza a mestria na arte — com frequência, os vencedores dos torneios históricos eram chamados de «reis» da escola.

Lembra que tens camisolas e outros produtos com este design à venda em RedBubble!

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Espadas a Esgalha para 2019!

Para iniciar o novo ano com bom pé, desde a Arte do Combate vamos facilitar a tomada de decissões: se queres fazer exercício, conhecer a tua história, experimentar uma atividade nova — vem connosco!

Sabemos que nem sempre é fácil chegar-se a uma atividade nova onde não conheces ninguém. Por isto, queremos oferecer o seguinte: se inicias aulas em janeiro de 2018,1 podes trazer outra pessoa grátis contigo durante esse mês.2 Não há excusa!

Se queres aproveitar esta oferta para fazer um presente a alguma pessoa querida, podes descarregar e imprimir este bilhete de convite. Lembra encher o teu nome e o da outra pessoa!

Sobra dizer que como sempre, teremos equipamento para emprestar, para além dum ambiente excelente.

Que tenhas boas festas — e um 2019 cheio de espadas!

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Lançamento oficial do livro «Há Uma Única Arte da Espada»

A vindoura quinta-feira 15 de novembro celebraremos o lançamento da tradução para o galego/português do GNM HS 3227a que titulamos Há Uma Única Arte da Espada. Será na Livraria Couceiro de Compostela, na Praça do Pão (também chamada «de Cervantes») às 19h45. Como oradores atenderão Manuel Valle Ortiz (director da AGEA Editora), Carlos Quiroga (professor de literaturas lusófonas na USC) e Diniz Cabreira (diretor da escola de artes marciais históricas Arte do Combate). Temos um convite em PDF que agradecemos faças chegar às pessoas que consideres puderam ter interesse no ato. Também ficamos em dívida se indicas assistencia e partilhas o evento que criamos no Facebook para publicitar o lançamento. O livro pode ser já comprado on-line no site web da AGEA Editora, ou bem ao pessoal da Livraria Couceiro o mesmo dia. → Mais informações acerca do livro.

Há Uma Única Arte da Espada?

Com o galho da publicação do livro Há Uma Única Arte da Espada surgiu no Facebook um comentário, muito razoável, de Aleksander Yacovenco. A resposta é um bocado extensa, dá para reflexionar em vários pontos, e acho que é útil recolhe-la cá. Eis o comentário e, de seguido, a resposta:
Se me permite a crítica, você não acha que “Há Uma Única Arte da Espada” parece um nome um pouco arrogante? Mesmo na Europa existiam diversas variantes da esgrima. Comparando apenas as escolas de esgrima européias mais comuns no contexto contemporâneo de HEMA, acredito eu, Liechtenauer e Fiore, podemos ver que há diferenças marcantes. Isso sem comparar com artes marciais de países não europeus, porque aí teríamos uma infinidade de artes marciais diferentes, cada uma no seu contexto e merecendo o devido respeito. Eu acredito que não foi com essa ideia que você escreveu o livro, só queria fazer essa observação e procurar esclarecimento sobre o porquê da escolha do título
É arrogante, sim. 🙂 O nome está tirado do próprio manuscrito (que não traz título). No parágrafo inicial, diz:
Acima de tudo deves saber e compreender que há uma única Arte da Espada e que esta arte foi concebida e pensada centenas de anos atrás. Esta arte é alicerce e coração da Arte do Combate, que foi plenamente entendida e conhecida pelo Mestre Liechtenauer. Mas ele não inventou ou criou o que é descrito aqui, senão que viajou e procurou por muitas terras, pois queria aprender e experimentar a Arte.
O que esse trecho significa está aberto a interpretação, logicamente. Mas eu considero que pretende afirmar os seguintes pontos:
  1. A Arte do Combate é muito antiga
  2. Liechtenauer dominou totalmente esta Arte
  3. Liechtenauer reuniu ou compilou a Arte (na Zedel, podemos inferir)
  4. A Arte da Espada é a base da Arte do Combate
  5. A Arte da Espada é, também, simples, reduzível para conceitos gerais ou mesmo universais (isto é: para a Arte do Combate)
  6. A Arte da Espada é em consequência a forma de se iniciar num sistema integral, universal, para lutar com qualquer espada ou até qualquer arma.
Os pontos 1 – 3 são basicamente glorificação do texto que vai ser exposto de seguido, e apelo a uma autoridade remota e inatacável pela via da antiguidade. Isto é um recurso muito comum na escolástica medieval (e ainda hoje). O ponto 4 é, de facto, discutido em vários lugares do texto: é dito que a Arte da Espada desce da Arte do Messer, e depois ainda que ambas e o Combate inteiro descansa no Ringen. Isto é, com certeza, um novo apelo à antiguidade e precedência para legitimar esses trechos do texto. Mas também há, como é habitual, um fundo de verdade: a Arte da Espada de duas mãos presentada no 3227a tem claros vínculos com o uso da espada de uma mão. E a luta corpo a corpo é a base mecânica da que nascem muitos outros tipos de luta. Muitos combates acabam em luta corpo-a-corpo. E também por ser a luta corpo-a-corpo muito distante (nos aspectos específicos da aplicação) da espada de duas mãos, comparando ambas os princípios comuns subjacentes (Schwach/Stark, Weich/Hart, Vor/Nach, Indes e Fühlen, Blößen, etc) destacam com clareza. Isto é, fundamentalmente, o recolhido nos pontos 5 e 6. A técnica específica da arma requer adaptação quanto mais diferente seja a arma (da espada de duas mãos para uma mão há pouca mudança comparado com a lança curta, e maior se a lança é longa e estamos a cavalo, e ainda mais na luta corpo-a-corpo). Mas os princípios comuns a todas formam o arco abrangente que seria a Arte do Combate. Esta abstracção, este Arte do Combate generalizado, é aplicável a qualquer escola e a qualquer arma. Transcende as particularidades dum mestre ou outro, e duma arma para outra. Da mesma forma na actualidade podemos aplicar a teoria dos «tempos» da esgrima contemporânea, ou compreender a verdade por trás dos «True Times» de George Silver, ou aceitar a descomposição geométrica da Verdadeira Destreza, ou comparar os pares de Schwach/Stark e Weich/Hart com outras muitas artes marciais. Seja como for, acho que é por isto que era dada tanta importância na tradição de Liechtenauer ao aprendizado da espada de duas mãos: através dela aprendemos aspectos teóricos comuns, e mesmo técnica aplicável, para as demais armas.1 Então — sim, a afirmação pode ser vista como arrogante, ainda que também pode ser interpretada dum ponto de vista mais filosófico. Vale dizer, em favor da verdade, que o anónimo autor do manuscrito dedica bastante texto a falar mal da esgrima «ruim e vulgar» que fazem outros mestres que não seguem a escola de Liechtenauer. Neste sentido nem se distingue da Verdadeira Destreza, nem de George Silver, nem do I.33, nem do próprio Fiore, por citar apenas alguns exemplos. Em todo caso, a frase deve ser entendida no contexto histórico e cultural adequado, onde o autor está apenas a utilizar a retórica socialmente aceite. O que não quer dizer que eu não concorde em certa medida com ele. 😉

Curso 2018-2019

O dia 2 de Outubro inicia o curso 2018-2019! Os treinos serão, como o ano passado, terças-feiras, mas agora de 20h30 a 22h00.
Este ano vamos treinar no IES Arzebispo Xelmírez I, que está no Campus Sul da USC: Esta mudança do lugar de treino é feita possível pela colaboração com a AMPA do centro. Ajudará a chegar a Arte do Combate a novo público, criar canteira, e proporcionará um espaço de treino mais amplo e adequado. Eis uma preview dele: Como decote, teremos equipamento para emprestar à gente nova que se chegue. Apenas tendes que trazer roupa de desporto. Nos primeiros dias o estudantado experimentado vai trabalhar um repasso rápido nalguns dos conceitos principais, enquanto a gente nova recebe uma primeira aproximação à Arte. Durante esta semana alguns de nós já estamos a preparar tudo para o inicio de curso: movendo o equipamento, presentando-nos ao pessoal… e localizando o bar mais próximo no que consumar o imprescindível «terceiro tempo».

Aguardamos-te!

Acordo de Colaboração com a AMPA do IES Gelmires I

Este ano fechamos um acordo com a Associação de Mães e Pais do Alunado do liceu Arzebispo Gelmires I para incorporar parte do estudantado nos nossos treinos.

Os treinos serão abertos para estudantes do centro que tenham 15 anos em diante, ou bem menores acompanhados duma pessoa adulta, até 10 lugares.

Com isto aguardamos chegar as HEMA e a Arte do Combate a um público novo e criar canteira.

Tendes mais informações na página dedicada ao Gelmires I no site da Arte do Combate.

Em breves serão já visíveis os cartazes no centro:

De modo que já sabes — se estudas no Gelmires I ou conheces a quem faça: as aulas iniciam a 2 de outubro!

Nova publicação: «Há Uma Única Arte da Espada»

Venho de publicar, com a ajuda da AGEA Editora, a minha tradução do GNM Hs 3227a, titulada Há Uma Única Arte da Espada.

Este não é o final do processo de cinco anos que levou a imprimir o livro: continuarei a trabalhar nesta e noutras traduções. Mas é um passo importante: deixar codificado o estado atual do meu entendimento da Kunst des Fechtens descrita no manuscrito.

O primeiro lote, recém acabados.

Aguardo que seja também útil para o estudantado da Arte do Combate. Ainda que o trabalho prático das aulas bebe de mais fontes que esta; e ainda que a prática muitas vezes encontra conflitos com a teoria, ler o que os autores originais nos deixaram escrito é sempre muito educativo.

Acho que também pode ser útil para qualquer pessoa com interesse na KdF ou nas artes marciais europeias dos S.XIV – XV. O 3227a é um texto singular, e o seu autor escreveu muito, e muitas vezes de forma muito clara, acerca da sua visão da Arte.

Podes ler mais acerca do livro (e também ver como comprar) na página dedicada ao mesmo da seção de recursos deste blogue.

Por enquanto, eis umas imagens:

Agitação e Propaganda

Mais um folheto de divulgação da KdF. Este é para ser impresso em A3 e pregado ao meio, como um pequeno jornal.

→ Podes descarregar cá um PDF com qualidade méia para ser impresso em A4.

É útil ao fazer aulas ou demonstrações nas que queremos que o público leve informação acerca da Arte para ler depois na casa (e, com sorte, decidir vir às aulas).

Os temas cobertos, por páginas, são:

  1. Presentação: a escola, Kunst des Fechtens, as HEMA.
  2. Código ético. Por que não uma arte autôctone? Inclusividade e não discriminação.
  3. Panóplia, extensão da Arte.
  4. Segurança, modernidade, motivação.

Como notarás, o objectivo do folheto não é tanto dar informação extremamente precisa acerca da KdF como criar uma imagem positiva da mesma, atacando os pontos de fricção que com frequência sucedem — e deixar a gente curiosa por conhecer mais.

O foco, colocado mais no académico e social que no desportivo, tem como objectivo selecionar o tipo de pessoas que se cheguem à escola como resultado da leitura do folheto: quero no estudantado determinadas atitudes.

Por que usar a terminologia original?

…ou, noutras palavras: por que não traduzir os termos? Zornhau para «Cutelada da Ira», Ochs para «O Boi», etc. Fácil, não é?

Mas… como traduzir Winden? Hengen puderam ser «as pontas suspensas», mas é um bocado longo, e dizer apenas «as suspensas» ou «as suspensões» não funciona assim tão bem. E como traduzir Leger? VersetzenNachreißenUberlauffen, AbsetzenDurchwechseln? Zucken? DurchlauffenAbschneiden? 1

Com certeza, podemos pensar em alternativas («Guardas», «Contra-técnicas», «Perseguir», «Ultrapassar» e «Desviar», etc). Mas, realmente traduzem bem o termo original? Fica mais claro o que quereis dizer através delas? Não envolvem pressupostos por parte de quem as escuta?

Nas aulas da Arte do Combate utilizamos uma terminologia próxima às fontes estudadas, mantendo os termos próximos2 da língua original antes que traduzidos, porque acho tem os seguintes benefícios:

  • Contextualiza o que fazemos: estudar uma arte marcial do S.XIV originária no Sacro Império Romano-Germano –e não assim uma arte do norte da península itálica no S.XV, ou a Verdadeira Destreza peninsular do S.XVII, ou o Jogo do Pau contemporâneo autóctone da Galiza e Portugal.
  • Cria um vocabulário técnico com significados específicos, o que evita equívocos e problemas de tradução. Assim, Winden é uma acção específica, sem nenhum outro tipo de interpretação que o termo traduzido possa dar a entender fora do explicado e treinado na aula.
  • É um valor de marca que dá identidade à prática. Não é bom ignorar o valor do marketing. De igual modo que as artes marciais orientais se identificam lexicalmente polo seu vocabulário (SenseiKiaiMorote Seoi Nage…), bem como a esgrima desportiva ocidental actual emprega termos franceses (riposte, flèche, allez…) ou italianos (maestro, radoppio…), ou o boxe utiliza mormente terminologia inglesa (jab, uppercut, ring, K.O.…), utilizar termos germanos no Kunst des Fechtens ajuda a fazer visível e dar carácter a olhos da população geral.
  • É parte do que fazemos! Se é possível separar história e técnica na nossa prática é tema para outro artigo. Mas a nossa arte marcial é histórica –produto dum tempo, cultura e contexto diferentes dos nossos– e conhece-lo e compreende-lo é necessário para a poder estudar em propriedade.

Reconheço que isto acrescenta uma carga de aprendizagem na pronúncia, escrita e assimilação dos significados para quem estuda a Arte do Combate. É possível aliviar esta carga facilitando nas aulas apontamentos da terminologia utilizada, por exemplo. Também é recomendável encorajar às estudantes a aprender a pronúncia correta dos mesmos (e, logicamente, utilizar essa pronúncia nas aulas).

Como clarificações finais, repare-se em que estou a censurar a tradução sistemática de terminologia original. Quer dizer: inventar um termo galego (português, brasileiro) para conceitos do MHD original, e descartar este ultimo do uso quotidiano.

Uma outra cousa é empregar termos autóctones (históricos, documentados) da esgrima ibérica. Nesse caso faz-se necessário combinar a introdução de termos da KdF com a preservação, recuperação e promoção do léxico original da nossa esgrima. Isto não tem por que ser conflituoso: há espaços em que utilizar o termo doméstico (no falar descontraído) e outros nos que utilizar o termo técnico (no nome ou descrição duma técnica).3 Tomemos por exemplo as partes da espada: «folha» (Klinge), «ponta» (Ort), «maçã» (Knopf)… são termos de uso, parte do nosso vocabulário. Dizer «podes pegar na maçã ou no cabo» é aceitável e útil. Por contra, se falar da «ponta do Zornhau» é válido, também é bom chamar a isso Zornort.

Assim, o elemento chave será, como sucede com frequência, a moderação. É bom sempre temperar com sentido comum o uso da terminologia: se dizer Durchwechseln resulta difícil, pode-se utilizar «troca de linha». Se Binden e Winden geram confusão, pode-se falar do «ligamento» no primeiro caso, etc. Mas não falhemos em utilizar os termos originais, especialmente em contextos formais, porque são, também, parte da Arte do Combate.

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Arte do Combate: história dum logótipo

Este artigo bastante longo é em parte deformação profissional e em parte resposta a algumas perguntas que recebi após fazer pública a marca da escola Arte do Combate. Vou tentar explorar nele os motivos e significados por trás do design.

Explorei muitas opções. Isso é uma vista de pássaro de parte dos desenhos que cheguei a criar.

Ao desenhar a logomarca de Arte do Combate tinha presentes várias necessidades:

  1. Criar uma marca diferenciada dentro das HEMA
  2. Facilmente reconhecível, de perto e de longe
  3. Fácil de reproduzir em diversos meios (uma ou várias cores, em quadricromia ou na web ou em vinil, etc)
  4. Com conteúdo semântico

Uma marca é combinação de nome + imagem gráfica. A imagem, à vez, depende frequentemente duma tipografia e dum estilismo, um símbolo ou ícone. Esses elementos interagem entre sim para constituir um todo.

O nome era a parte mais ou menos simples. Avaliei várias opções tomadas do campo lexical da Kunst des Fechtens, mas não queria escolher um termo alemão que parte do público local teria problemas em reproduzir. Devia ser memorável e descritivo e, dada a casuística linguística da Galiza, não apresentar dúvidas ortográficas.

Finalmente, a opção mais directa e simples, como sucede muitas vezes, foi a melhor: traduzir Kunst des Fechtens ao galego serve como nome da escola e da arte que treinamos ao tempo. Serve, também, para mudar o foco de «aulas de espada longa» para «aulas de Kunst des Fechtens», algo que queria aproveitar para fazer nesta nova etapa.

As cores também resultaram simples. Queria umas cores de contraste, eficazes. Queria trabalhar sobre uma base mormente branca para a imagem gráfica geral, para dar luminosidade ao projecto, e que sobre essa base contrastassem outras cores com força. Vermelho e preto eram escolhas óbvias —além de estar ligadas à tradição dos manuscritos medievais—, mas estão já em uso em vários colectivos e resultam menos reconhecíveis. Amarelo e preto, por contra, são menos utilizadas. São cores de advertência, de perigo (como o vermelho e preto) e funcionam mui bem juntas: sobre a vestimenta preta que utilizamos o amarelo e o branco têm, ambas, boa legibilidade —melhor que o vermelho. O amarelo (ouro) é, além disso, uma das cores históricas da Galiza.

A tipografia foi, junto com o símbolo, um dos elementos que mais variações teve. Queria algo moderno, legível, de impacto e desportivo.

Sim, desportivo, por associação à modernidade e contemporaneidade. Embora Arte do Combate seja um projecto fundamente afastado da prática desportiva, em primeira aproximação —na mente do público, receptor da publicidade— isso não é assim: as artes marciais são «desportos» para a gente comum. E os desportos são cousa diferente da recriação histórica, o LARP ou outras práticas com que a nossa actividade, por vezes, se pode confundir. Esquivar uma estética historicista serve, assim, para reforçar precisamente a prática marcial.

A tentação de escolher umas formas ainda assim históricas, ou mesmo modernas de inspiração histórica, era considerável. Nalgum momento quis recuperar as espectaculares tipografias Tannenberg e a Potsdam (tragicamente associadas ao regime nazista alemão, que ironicamente acabou proibindo o uso de todas as Gebrochene Grotesk afirmando que eram «letras judias»), já que presenta uma fusão das formas caligráficas góticas com o racionalismo e linha de traço recto próprias do modernismo e futurismo de princípios de século.

Porém, as formas góticas são menos conhecidas hoje, e presentam problemas de legibilidade. Além disso, reforçavam a direcção historicista que queria evitar. Preferi portanto deixa-las para algum uso pontual, ilustrativo, mas escolher uma tipografia de desenho moderno para a marca. As formas deviam ser de impacto, de cabeçalho, legíveis, reproduzíveis a grande tamanho. Deviam também encaixar com o estilo de traço do símbolo.

Para satisfazer estes pontos acabei por seleccionar a fonte Intro, uma tipografia simples de desenho modernista e forte impacto visual. As formas redondas e geométricas evocam uma época de progresso, de futuro, ideias que quero também associar à prática e interpretação que faço da Kunst des Fechtens.

O símbolo é o elemento final do conjunto. Não foi desenhado de forma autónoma: texto e imagem sofreram várias iterações em que se afectaram mutuamente, como pudestes ver na ultima mudança da tipografia descrita acima (posterior à criação do símbolo).

Queria criar um ícone que representasse o Kunst des Fechtens. Em qualquer processo de desenho o primeiro passo é estudar os trabalhos prévios que já existam, e neste caso tinha um antecedente evidente: a estilização quase que a Göteborgs Historiska Fäktskola utilizou até há pouco tempo (agora mudaram, ironicamente, por um estilo entre o historicismo e o hipster trendy).

A inspiração que a GHFS teve para esse símbolo é clara: os ícones dos desportos olímpicos. Comparai, acima, com o ícone utilizado nas olimpíadas de Barcelona 1992 (e como nota à margem, tendes aqui uma excelente comparativa de todos os ícones olímpicos modernos). E é uma boa inspiração: reforça a conexão de modernidade que quero estabelecer para Arte do Combate também. A postura da personagem é também adequadamente representativa —as Hengen, ou pontas suspensas, são centrais e características do Kunst des Fechtens em comparação com, por exemplo, as posturas que vemos na espada longa de Fiore.

Trabalhei portanto partindo dessa ideia. Queria utilizar uma limpeza de traço maior — mais geometria, com um carácter mais icónico, quase hieroglífico. Para isso, jogar com ângulos e linhas rectas.

Podeis ver que a ideia é simples, e o processo bastante natural: partir duma representação geométrica, minimalista, de formas singelas da postura, da Hengen. Depurar detalhes como a distância entre espada e mãos, a curvatura dos virotes. Acrescentar uma outra figura, em oposição, fechando assim a composição. Definir as pontas das espadas e os pés. Depurar a posição das mesmas marcando que uma lâmina fica sobre outra. Acrescentar o circulo para dar movimento ao conjunto e fechar o desenho… e assim, ao fechar o circulo, as espadas cruzadas tomam entidade própria, virando num ícone que pode ser utilizado de forma autónoma, sem as figuras.

Na figura solitária faltava certa harmonia, certo equilíbrio. Além disso, esquivava um facto importante da arte que treinamos: é uma actividade colectiva, social. Necessitamos gente com que trabalhar. Incorporar a segunda figura atendia esses pontos mas complicava o conjunto, transformando-o dum ícone numa ilustração, um desenho geométrico que pode ser utilizado para complementar e ilustrar a marca, mas não como o elemento simples que deve mostrar um isologótipo.

Extrair o círculo com as espadas é o final natural do processo e ironicamente devolve-nos a uma composição moderna quase evocadora do escudo de armas histórico, da composição heráldica. Fechamos assim um outro círculo, o semântico-conceptual, e retornamos através do design e a estética modernas a uma certa evocação histórica. Este tipo de processos circulares sucedem com surpreendente frequência no design.

O símbolo, com esse estilo de traço, é doado de equilibrar com o traço das letras, reforçando assim o conjunto. O resultado é harmónico e dinâmico à vez, estável e em movimento, histórico e moderno.

É um isologótipo que pede ser centrado, ocupar espaço e ter ar ao redor, mas que pode à vez ser reduzido a tamanhos pequenos sem perda de legibilidade ou qualidade. Pode ser facilmente representado com várias técnicas, do vinil à serigrafia, e pode ser aplicado em uma soa tinta ou em negativo sobre fundos fotográficos ou em situações de baixo contraste.

A presentação a uma tinta é simples e direta de fazer, bem como outras adaptações que sejam necessárias. Tem variações para uma presentação horizontal (como, por exemplo, nos cabeçalhos da página da AdC):

Há uma harmonia interna no design em vários pontos — por exemplo, o largo do traço, que na representação primeira é de 2x o largo do traço das letras, e na representação horizontal de 1x esse largo. Essa mesma distância define os «ocos» ou espaços negativos no isologótipo. Também as distâncias entre as letras, entre as palavras, e entre as palavras e os objectos foram cuidadosamente ajustadas, já que particularmente na versão horizontal era necessário igualar o largo das palavras «arte do» com «combate» para o conjunto ficar simétrico:

Com certeza, a marca continuará a evoluir —raramente sou capaz de deixar fixado um desenho demasiado tempo, quando depende de mim— segundo apareçam necessidades e problemas novos ou encontre melhores soluções. Mas, pelo momento, gosto do resultado.